1. Introdução
O estudo procura retomar a discussão epistemológico-histórica em Ciência da Informação sobre o conceito de mediação, a partir da obra seminal do pesquisador russo Nicolas Roubakine, “Introdução à Psicologia Bibliológica” (Introduction à la Psychologie Bibliologique), publicada em dois volumes no ano de 1922, fruto este de mais de 30 (trinta) anos de teorização e de aplicação de métodos de diferentes ramos do conhecimento para o estudo das relações entre o livro e as pessoas leitoras em ambientes de formação continuada, como bibliotecas. Este exercício teórico e empírico se dá ao longo de sua vivência e de sua práxis na Rússia estruturalmente nos anos 1880 e 1900.
O objetivo central da proposta é, dentro do percurso de investigação epistemológico-histórica em Ciência da Informação, identificar e discutir as contribuições de Roubakine sobre os fundamentos da mediação, a partir de seu contexto de produção e suas influências da virada do século XIX para o século XX. O período é marcado pelo avanço do modelo positivista para sustentação e formalização das ciências sociais, assim como o rápido desenvolvimento de pesquisas sobre as relações entre pessoas e coletividades, o “eu” e a “comunidade” onde o “eu” se encontra, donde provêm parte das bases para a Psicologia, junto aos aportes de uma dialética teorizada perante as contradições e desigualdades do capitalismo no decorrer do 1800.
No quadro destas questões, mergulhado em uma realidade em acelarada transformação filosófica e técnica, Nicolas Roubakine encontrará, no livro, na biblioteca e, principalmente, na pessoa leitora e suas formas de apropriação do conhecimento através do que hoje podemos chamar de mediação sociotécnica do conhecimento registrado, o foco de suas pesquisas. Junto aos estudos de leitura e de recepção, desde o final do século XIX, as teses roubakinianas encontram o campo empírico singular para reflexão sobre a formação das mentalidades e de suas expressões, a emancipação intelectual e a contínua transformação das invidiualidades (o “eu”, no seu vocabulário) e das coletividades (o “eu do outro”, como o “proletariado”, em seu léxico, comunidade esta central em seu pensamento, dada sua atenção ao contexto de pessoas à margem dos circuitos de acesso e de formação continuada das instituições do conhecimento. Da escola às bibliotecas, das bibliotecas aos círculos intelectuais de sua época, na Rússia czarista, estes são territórios em mutação observados pelas lentes teórico-metodológicas roubakinianas. Debruçado sobre os fenômenos de construção do conhecimento diante dos potenciais de mediação sociotécnica, Nicolas Roubakine produz uma obra sobre conceitos estruturais da Ciência da Informação até ali, como bibliografia e bibliologia (Couzinet, 2011), tendo influência direta no léxico e na epistemologia do Traité de Documentation de Paul Otlet (1934), publicado doze anos após a obra maior roubakiniana aqui investigada.
O artigo integra as inquietações oriundas da investigação das configurações autorais, institucionais, téoricas, metodológicas, processuais e técnicas no contexto da formação epistemológica em Ciência da Informação no quadro referencial dos estudos de mediação, apresentando o percurso epistemológico-histórico das linhas desta influência na relação Brasil-mundo, donde parte esta investigação. O resultado aqui apresentado é parte do projeto científico “Cartas filosófico-epistemológicas em Ciência da Informação: cartografias narrativas das teorias da informação do século XXI para ciência, sociedade e inovação”, investigação científica sob fomento da Chamada CNPq Nº 04/2021 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do Brasil.
2. Métodos
A pesquisa responde pelo exercício teórico, conceitual e bibliográfico sobre uma dada “filosofia da informação”, ou construção de uma teoria do conhecimento que sustenta a epistemologia da Ciência da Informação ontem e hoje, sob diferentes conceitualidades, como o caso do termo “informação” e, aqui, pontualmente, o conceito de “mediação”. O percurso investigativo atravessa, pois, a caminhada teórica de reconhecimento da elaboração das ideias e das teorizações, a reforma na historicidade do pensamennto constituído na e para Ciência da Informação no século XXI a partir de uma epistemologia histórica que compreende as rotas de interligação e afastamentos de ideias e de práxis.
Da produção retrospectiva ao século XXI, na produção bibliográfica de fundamentação epistemológica, através, objetivamente, de sua macroteorias, as “Cartas filosófico-epistemológicas em Ciência da Informação” procuram tecer o mapa teórico-conceitual do pensamento no campo, em sentido amplo, da filosofía à teoria social, da estrutura educacional à materilização conceitual nas matrizes disciplinares, como o caso do conceito de mediação e sua emancipação como categoria de análise e de discussão, de operação e de intervenção no real. O horizonte do estudo é, dentro da permanente perspectiva epistemológico-histórica, que sustenta em nossa reflexão a posição do discurso contemporâneo com contínuo processo de reconstrução de conceitos, teorias e métodos do campo anteriormente definidos e testados, lançar à superficie dos debates sobre a teoria do conhecimento de nossa constituição como ciência sua longa história de mutações e de inovações sociocríticas, como as formas de definição e de aplicação do conceito de mediação.
O presente recorte da investigação procura identificar a produção do questionamento epistemológico-histórico do conceito de mediação a partir do pesquisador Nicolas Roubakine. Este percurso nos leva à interrogação dos procesos de repercussão do pensamento roubakiniano no século XXI, do plano geral (as distintas formas de fundamentação e repercussão de suas ideias nas décadas iniciais de nossa contemporaneidade) ao potencial de reconhecimento dos estudos que procuraram se debruçar sobre a complexidade do conceito de mediação em sua teorização, do plano internacional à pesquisa sediada no território brasileiro.
A evidência identificada nesta etapa de invetigação aponta para ausência de um trabalho em nossa produção recente cujo foco esteja na questão da mediação segundo Nicolas Roubakine. Esta hipótese é indicada a partir da revisão bibliográfica nas bases de dados em Ciência da Informação verificadas no período de 01 de fevereiro a 30 de abril de 2024, bem como do processo de investigação das fontes roubakinianas no período de 2018 ao ano corrente.
No âmbito das fontes, no plano internacional, foram consultadas Base Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (Brapci), disponível no endereço eletrônico em rede https://brapci.inf.br/#/, Base de dados dos Encontros Nacionais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (Benancib), disponível no endereço eletrônico eme m rede https://benancib.sites.uff.br, Scientific Electronic Library Online (Scielo), disponível no endereço eletrônico em rede https://www.scielo.br/, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (BDTD Ibict), disponível no endereço eletrônico em rede https://bdtd.ibict.br/, Library, Information Science & Technology Abstracts (LISTA), disponível no endereço eletrônico em rede https://www.ebsco.com/products/research-databases/library-information-science-and-technology-abstracts, Library and Information Science Abstracts (LISA), disponível em https://about.proquest.com/en/products-services/lisa-set-c/, Cairn.info, disponível no endereço eletrônico em rede https://www.cairn.info/a-propos.php.
Da ausência de uma reflexão direta sobre a mediação a partir do pensamento roubakiniano presente na produção bibliográfica em Ciência da Informação no século XXI, os caminhos metodológicos da pesquisa respondem pela direção de estudos epistemológico-históricos que remontam o processo de construção, no Brasil, a partir do longo diálogo teórico com a França, desde as influências, por exemplo, de Gabriel Naudé e Paul Otlet na formação em Biblioteconomia e Ciência da Informação no território profissional, acadêmico e científico brasileiro, até a constituição da Rede Franco-Brasileira de Pesquisadores em Mediações e Usos Sociais de Saberes e DA Informação (Rede Mussi), a partir das doutoras Regina Marteleto, pelo Brasil, e Viviane Couzinet, pela França. (Marteleto, Couzinet, 2008)
Criada em 2008, a Rede Mussi permitiu-nos, inicialmente, do acesso à produção franco-brasileira até o contato direto com a trajetória do pensamento de Robert Estivals, centralmente a produção epistemológica tecida na Revue de Bibliologie: schéma et schématisation, publicada entre os anos 1960 e 2010. Foi a partir do contato com o pensamento e o acesso ao fundo documental estivalsiano, franqueado por Danièle Estivals, em 2018, que, sob o apoio e intermediação acadêmico-científica de Viviane Couzinet, nós chegamos tanto ao acesso à produção do periódico, como à obra de Nicolas Roubakine e, por fim, ao solo textual de suas reflexões sobre o conceito de mediação. Estas fontes eram, para nós, até ali, no ano de 2014, quando do primeiro contato com Robert Estivals, não identificadas no território brasileiro através dos sistemas bibibliográficos nacionais e locais, como o Catálogo Coletivo Nacional de Publicações Seriadas (CCN), do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), catálogo da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e catálogos das bibliotecas universitárias com cursos de pós-graduação em Ciência da Informçaão no citado contexto.
A obra consultada para esta fundamentação parte, pois, da edição de 1998, reimpressa pela Association Internationale de Biblologie (AIB), a partir da liderança acadêmico-científica do doutor Robert Estivals e da doutora Elena Savova. Para o uso de citação da obra consultada, ou seja, da versão da AIB dos anos 1990, demarcando o produção de Nicolas Roubakine no contexto dos anos 1920, usaremos ao longo do trabalho a fórmula de descrição nas citações referentes à Roubakine a seguir: ((1922) 1998)). Esta fórmula permite à leitura de nossa argumentação a identificação corrente da demarcação temporal do discurso em debate.
O uso da transliteração é dada pela fonte original publicada e pela fonte acessada, a citada obra reimpressa pela AIB. Em razão do seu exílio na Suíça após a expulsão da Rússia, provocada pelo regime czarista em razão de suas publicações, suas ideias e práxis, a primeira versão de sua principal obra é realizada em língua francesa e com a transliteração francófona de seu nome, ou seja, Rubakin, na tradição portuguesa, Roubakine, em francês, registro nominal presente na obra publicada em 1922 e na fonte impressa em 1998 pela AIB, esta, repetindo, a forma nominal aqui adotada.
A compreensão do potencial de fundamentação e de crítica da constituição epistemológico-histórica da Ciência da Informação estava dada, desde o primeiro contato com Robert Estivals, como uma missão investigativa. A enorme influência roubakiniana em Paul Otlet e em toda a geração da Association Internationale de Biblologie (AIB) e da Revue de Bibliologie: schéma et schématisation, bem como o impacto de Roubakine em territórios como Leste Europeu e África francófona, dentro da estrutura de uma teoria do conhecimento co-fundadora não apenas do que passaríamos a chamar “Ciência da Informação”, mas também em outras disciplinas científicas, como Psicologia, Educação e Sociologia, representara, pois, justificativa sólida para a imersão epistemológico-histórica, como o caso do contexto da formação do conceito de “mediação” no século XX a partir das relações com os chamados “meios de comunicação”, do livro às veículos de comunicação como rádio, observados atentamente por Otlet (1934).
3. Da categoria mediação e dos estudos roubakinianos nos trópicos
A construção deste estudo tem relação direta com um périplo de procura por fontes epistemológico-históricas que nos levam ao pensamento de Nicolas Roubakine a partir dos diálogos com o pesquisador francês Robert Estivals, intermediados pela doutora Viviane Couzinet. Como demonstrado, o percurso de investigação até o contato com a obra propriamente dita de Roubakine e sua chegada ao Brasil nos leva à disseminação das ideias roubakinianas, no contexto dos resultados da pesquisa pós-doutoral. Tal pesquisa, realizada entre 2017 e 2018, sob o fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil, é divulgada inicialmente no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do acordo de cooperação entre o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ou PPGCI Ibict UFRJ, no Rio de Janeiro, Brasil.
Integra o itinerário de estudo, o impacto da literatura rediscutida e produzida pela Rede Mussi sobre mediação e a tradição da pesquisa brasileira sobre o conceito, incluindo estudos que dialogam com as relações entre mediação e leitura. Registra-se, pois, centralmente, como fonte do percurso investigativo no Brasil sobre mediação, a trajetória da produção da doutora Regina Marteleto, junto aos resultados desdobrados do percurso anterior, sua produção a partir dos anos 1990 sobre o plano conceitual e empírico da mediação (Marteleto, 1999, 2003) e posterior à fundação da Rede Mussi, como Marteleto (2010), Marteleto e David (2021), Marteleto e Saldanha (2021).
Do ponto de vista conceitual, o desenvolvimento da reflexão sobre mediação em Roubakine encontra, de modo indireto, a perspectiva social e dialética, bem como territórios em horizonte de autonomia, discutida futuramente em Oswaldo Almeida Júnior (2008a,b, 2007a), Marco Antonio de Almeida (2008), Giulia Crippa (2011), Ana Amélia Martins (2019, 2021), em Martins e Fabíola Farias (2023).
Do ponto vista dos estudos de leitura, mediação e apropriação do conhecimento, igualmente a trajetória do pensamento roubakiniano sobre o “mediato” e o imediato, indiretamente, virá relacionar-se com Oswaldo Almeida Júnior (2007), Marco Antônio Almeida e Giulia Crippa (2009), Martins e Farias (2023).
É neste território frutífero de produção investigativa sobre mediação, rigorosa e exaustivamente discutido na tese de Ana Amélia Martins (2010), onde se enncontra o solo para a curiosidade epistêmica em torno da repercussão e da ausência roubakiniana na teoria da mediação em Ciência da Informação. Aqui, como na menção às fontes de autoridades epistêmicas anteriores, a presença roubakiniana não é identificada.
Assim, o primeiro deslocamento do estudo para continuação, partilha e discussão dos resultados da pesquisa pós-doutoral anteriormente apontada, entre 2018 e 2019, se dá no âmbito do convite da doutora Cristina Dotta Ortega, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, Brasil, para uma palestra sobre a trajetória das ideias estivalsianas e produção epistemológica presentes na Revue de Bibliologie: schéma et schématisation. Seguiu-se este contato a apresentação de parte dos resultados investigados em uma discussão epistemológica sobre o papel de Roubakine na formação do campo, através da reflexão “A invenção da Ciência da Informação segundo Nicolas Roubakine (Rubakin)”, apresentada no Encontro anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (Ancib), Brasil, em 2019, em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. (Saldanha, 2019)
Ainda em 2018, a partir dos diálogos de investigação epistemológico-histórica abertos no México pelo doutor Miguel Ángel Rendón Rojas, do Instituto de Investigaciones Bibliotecológicas y de la Información (IIBI) da Universidad Nacional Autónoma de México, no contexto do Círculo Iberoamericano de Estudos de Ciência da Informação Documental (Ciibercid), foi possível apresentar os primeiros resultados das possibilidades de transformação que o pensamento roubakiniano trazia para refundação da Ciência da Informação a partir de um debate sobre a gramática das intencionalidades na formação das pessoas e do foco de conhecimento das comunidades pela ótica informacional. (Saldanha, 2018)
Desdobra-se deste movimento, o plano de investigação colaborativa entre as instituições, IBICT UFRJ e UFMG, bem como a rede de pessoas pesquisadoras do grupo de pesquisa “Ecce Liber: filosofía, linguagem e organização dos saberes”, desenvolvido entre IBICT e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). O coletivo dedicado ao pensamento roubakiniano se amplia com a proposta de investigação do doutor Claudio Paixão Anastácio de Paula, da UFMG, líder do grupo de pesquisa GEDII (Gabinete de Estudos da Informação e do Imaginário). A partir de 2021, com Claudio Paixão, constitui-se entre os coletivos do Ecce Liber e do GEDII, o Círculo de Estudos Roubakinianos (Cerub), grupo de investigação interesado nas mais distintas potencialidades conceituais, téoricas e metodológicas abertas por Nicolas Roubakine em e para Ciência da Informação e disciplinas científicas afins, com a apresentação de seus primeiros resultados dos diálogos e das leituras em 2022.
Para compreender a chegada à reflexão sobre a “mediação” a partir de Nicolas Roubakine, o percurso de investigação, compreende, pois, como nos parágrafos anteriores demonstrado, o registro dos caminhos realizados pelos rastros do pensamento do pesquisador, as relações Brasil-França nos estudos epistemológicos e de e sobre mediação, a produção brasileira atenta tanto ao conceito como ao pensamento roubakiniano. Deste modo, parte fundamental das investigações desdobradas das relações entre epistemologia, teorias, métodos e conceitos, centralmente a relação entre leitura e pessoas leitoras, multiplicam-se no encalço da complexa teia de produção filosófica de Nicolas Roubakine.
Intregram, ainda, os esforços de interpretação do pensamento roubakiniano, até a inflexão sobre a mediação no pensamento do filósofo russo, o questionamento da predicação do “social” no desenvolvimento epistemológico-sociológico da Ciência da Informação (Silva, Saldanha, 2016; Salomão, Saldanha, 2023a), a revisão bbibliográfica da produção roubakiniana em território brasileiro em fontes especializadas e fontes gerais de informação (Salomão, Valle, Siciliano, Mata, Saldanha, 2021), a questão do fundamennto político da intecionalidade na epistemologia da Ciência da Informação (Saldanha, 2018), a fundamentação epistemológica propriamente dita, de sua teoria geral à metodologia, em Ciência da Informação, pela via roubakiniana (Saldanha, 2019), e, estruturalmente, a trajetória de estudos aprofundados da pesquisadora Amanda Salomão sobre leitura e pessoas leitoras, dois dos conceitos centrais da pesquisa de Nicolas Roubakine (Salomão, 2020; Saldanha, Salomão, 2021; Salomão, Saldanha, 2021, Salomão, Saldanha, 2023b).
4. A mediação segundo Nicolas Roubakine
Em seu quinto e derradeiro capítulo do primeiro volume da obra Introduction à la Psychologie Bibliologique, intitulado “Do estudo biblio-psicológico de si mesmo até um estudo análogo de outros leitores. O problema do ‘eu’ dos outros em bibliopsicologia” (De l'étude biblio-psychologique de soi-même à une étude analogue des autres lecteurs. Le problème du « moi » d'autrui dans la biblio-psychologie.), Roubakine ((1922) 1998a) se pergunta sobre os limites da possibilidade da investigação científica da formação do pensamento da pessoa leitora (aqui, é necessário apontar, a noção de pessoa leitora é ampla, orientada inicialmente para o contato com o universo do livro, ou seja, do texto e da imagem, mas vai além da condição única do veículo de registros do conhecimento de um códice vegetal, tendo Roukine mecionado, por exemplo, o cinema, em seus estudos).
É este um ponto alto, na obra, ou seja, ao final do primeiro volume, de discussão sobre as relações entre mediação, o conhecimento “mediato” e conhecimento “imediato”, bem como a complexidade de sua teroização, à luz das teorias de vanguarda, do final do século XIX e do início do XX, nas ciências exatas e sociais. Em discussão está, objetivamente, a questão do que é mediado e do que não é mediado, ou fruto de um exercício de mediação sociotécnica, de um lado; de outro, resultado de uma forma de relação “direta” entre observador e realidade.
Nos termos etimológicos, como nos aponta Houaiss e Villar (2001), o “imediato” trata-se daquilo que não recebe mediação de espaço, que é contíguo, que age sem intermediário, sendo, no plano filosófico, aquilo que é caracterizado pela ausência de um intermediário entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido ou a conhecer. O que é fruto da mediação (do latim mediatio), por sua vez, responde pelo fenômeno, ação ou condição intermediária, logo, sustentado por uma construção material, uma experiência sociotecnicamente mediada.
Segundo Roubakine ((1922) 1998a), a compreensão do “eu” pode se dar de forma “imediata” ou “mediata”. A primeira abordagem aponta para o contato presencial ou pela observação direta das manifestações externas das pessoas. Aqui, pode-se constituir uma imagem externa de cada pessoa e sua comunidade, elaborando hipóteses sobre o que está oculto por trás daquilo que a imagem permite manifestar no mundo sensível. Este, o conhecimento imediato do “eu” é compreendido pelo léxico roubakiniano como “conhecimento telepático”, isto é, um conhecimento independente dos órgãos dos sentidos. Registra-se aqui vasta bibliografia consultada e discutida por Roubakine sobre as possibilidades de estudo objetivo do inconsciente, incluindo os estudos sobre hipnose.
O conhecimento imediato é compreendido por Roubakine ((1922) 1998a) como “telepático” ou “metapsíquico”, vivenciado por dois ou mais “eus”. O pesquisador insiste na afirmação de fenômenos que denomia como “telepáticos” a partir de transmissão de palavras, frases, fórmulas matemáticas, sentimentos, em meio remoto, à distância. Temos aqui, de um lado, elementos que questionam os processos de transmissão do pensamento pela via psíquica conforme as tensões dos estudos sobre a mente na virada do século XIX para o XX, como a abertura, por outro lado, para, desde o códice vegetal ao cinema, por exemplo, a compreensão da transmissão de ideias através de princípios técnicos que, na ausência da relação de contato presencial entre dois “eus”, permitiria o fluxo de um elemento mental entre pessoas, como o caso dos reflexos de um texto na pessoa leitora, mesmo “à distância” da fonte autoral, a fonte produtora ou emissora do discurso.
O conhecimento “mediato” propriamente dito é aquele, segundo Roubakine ((1922) 1998a), conhecido como “reencarnação”, vinculado à intuição. O primeiro movimento da leitura roubakiniana de mediação pode nos conduzir apenas para um plano psíquico – ou, até, metafísico, conforme a dinâmica de interpretação do elevado grau de positivismo em sua figuração dos relações mentais, isto é, a hipérbole da racionalidade positivista elevada à essência de uma instancia racional aquém e além do real material, como demonstrado nas formações teológicas positivistas. Este exercício, em um plano macro, seja sobre uma gramática da intencionalidade na arena de uma análise política da pessoa leitora (Saldanha, 2018), seja, antes, na própria fundamentação de um “social”, ou seja, de uma demarcação de força histórica e socialmente tecida da realidade entre livro, leitura e pessoa leitora, como debatido em Silva e Saldanha (2016), é sobre, a partir de, no âmbito de um real social, que estamos a questionar e compreender a “mediação” em Roubakine ((1922) 1998a).
Profundamente interessado nos estudos psicológicos e psiquiátricos da virada do século XIX para o século XX, bem como toda tradição de influência da Física nas ciências sociais, a partir de Auguste Comte, Roubakine ((1922) 1998a) procurará em distintas fontes de inovação nos estudos sobre o conhecimento e a leitura formas de compreender os processos de produção intelectiva nas pessoas leitoras. Por esta razão, o quesionamento sobre o que é mediado, o que é imediato e o modo de construção dos meios de mediação é fulcral em sua teoria. No lugar de centralidade do estudo, está o livro como “um objeto de mediação”, porém Roubakine insiste que não é este, o livro, o objeto nuclear de estudo, e, sim, a pessoa leitora e os impactos da ação de leitura nela e em suas comunidades.
Dois conceitos basilares na obra roubakiniana para os estudos da mediação, pois, são necessários para avançar na complexidade trazida pelo filósofo para uma teoria da mediação. De um lado, o mnéma, e, de outro, o “meio social”. No capítulo segundo do seu primeiro volume da Introduction à la Psychologie Bibliologique, “Ponto de vista fundamental e noções fundamentais: a percepção e o mnéma” (Point de vue fondamental et notions fondamentales : la perception et le mnéma), Roubakine ((1922) 1998a) explora as relações entre o conceito de mnéma e noções aproximadas como engrama. De acordo com Roubakine, a doutrina do mnéma baseia-se no fato de que todos os processos e atividades já tiveram lugar ao menos uma vez na matéria orgânica (diaríamos, aqui, intracraniana). O filósofo russo aponta para figuras materiais do meio orgânico humano, como nervos, músculos, células. São vestígios de uma passagem de registros, de engramas. Esta predisposição permite processos de atividades de analogía ou ações análogas, a partir do mnéma, que, por exemplo, quando repetidas, realizam-se com maior facilidade e menos esforço. O mnéma preserva ligações íntimas de complexos de excitações do mundo exterior, provocam a substância viva (matéria orgânica latente) e imprime-se em forma de engramas (ou complexus de energia latente). Assim, o complexus, inscrito inteiramente no mnéma, é revivificado periódicamente a partir da exteriorização.
Como demonstra, em seu capítulo IV, intitulado “Aplicação da introspecção à correção do leitor. Livro considerado reativo ao leitor durante o estudo introspectivo do processo da leitura” (Application de l'introspection à la correction du lecteur. Livre considéré comme réactif du lecteur au cours de l'étude introspective du processus de la lecture), não é o livro – o artefato, o instrumento sociotécnico – o ponto de reflexão sobre mediação, mas a complexidade inerente à pessoa leitora no gesto da leitura. Como aponta Roubakine ((1922) 1998a), o fato de um livro atuar como potencial de ação de uma pessoa leitora, não confere ao artefato o protagonismo da ação. O autor criticamente diz-nos que, nesta hipótese, bastaria entregar à mão de uma pessoa um livro para que um dado efeito esperado pudesse ser manifestado em seu mnéna. Por se só, afirma o léxico roubakiniano, o livro é um objeto impotente. A força do livro não está em si, mas no mnéma. Porém, também este, como observamos em seu pensamento, centralmente em seu método, não basta. É necessária uma práxis, uma ação metodológica, um exercício de mediação entre pessoa leitora, universo de fontes (como livros) e a realidade social.
Nem um, nem vários livros, uma biblioteca inteira de uma pessoa intelectual, docente, ou, mesmo, de uma criança com acesso a amplas fontes de registro do conhecimento desde seus primeiros anos de formação como leitora, resulta necessariamente em um processo de apreensão do conhecimento. Não é o livro, mas a vida, a própria vivência leitora que manifesta as transformações de circunstâncias internas e externas, explica-nos Roubakine ((1922) 1998a).
Reconhecendo o papel do livro no processo como parte integrante da transformação, o filósofo russo aponta, antecipando estudos de recepção e de comunidade, de práxis sociológica e antropológica do conhecimento registrado, que o livro integra o conjunto de circunstâncias da mudança, como parte da percepção, ou ainda, da projeção que se manifesta na pessoa leitora. A realidade, afirma Roubakine ((1922) 1998a), é a vida; o conteúdo do livro não é uma realidade. O poder do livro, reconhecido na tese roubakiniana, cresce no âmbito social à medida em que um mnéma correspondente é criado para ele. O que faz o livro, o conjunto de palavras, os textos, é excitar elementos do mnéma, provocar combinações, sendo que, na ausência de um mnéma correspondente, a influência de um livro é nula.
A teoria do mnéma em Roubakine ((1922) 1998a) vai questionar, pois, no plano da comunicação de massa, o papel da publicidade, apontando para uma crítica de sua forma de construção, baseada na fonte, e não no receptor, diríamos hoje. O “mnéma real”, o “mnéma verdadeiro”, diz-nos Roubakine ((1922) 1998a, p. 222), é prático e vivo. O “mnéma verbal” se esfarela, é uma mancha, será esquecido, e não exercerá influência sobre os atos. Na crítica roubakiniana da compreensão da força publicitária das ideias manifestas em livros, panfletos, textos, discursos, entende-se, conforme o filósofo russo, que a propaganda e a capacidade desta de agitar as massas não está no livro pelo livro, mas nos mnémas dos indivíduos. Assim,
Si cette vérité pourtant bien simple avait été seulement comprise des gouvernements, cela leur aurait conservé les milliards qu’ils dépensent pour la propagande. Un mnéma devient facilement accessible à la propagande grâce à la politique inintelligente de l’adversaire. C’est ainsi que le tzarisme a travaillé pour la révolution, tout en faisant la propagande des idées tzaristes. L’antibolchévisme et le capitalisme font le jeu des bolchéviks, et inversement. ((1922) 1998a, p. 222)
Se essa simples verdade tivesse simplesmente sido entendida pelos governos, teria economizado os bilhões que gastam em propaganda. Um mnéma torna-se facilmente acessível à propaganda graças às políticas pouco inteligentes do adversário. É assim que o czarismo trabalhou para a revolução, fazendo propaganda das ideias czaristas. O antibolchevismo e o capitalismo fazem o jogo dos bolcheviques e vice-versa. (Roubakine, (1922) 1998a, p. 222, tradução nossa)
É provável que esteja aqui, na teoria do mnéma reelaborada por Nicolas Roubakine, um dos motivos intelectuais claros de sua expulsão da Rússia czarista.O filósofo nos demonstra, a partir de uma profunda teoria social, que a força do mnéma depende de sua correspondência com a realidade (a realidade da pessoa leitora, a realidade da recepção, e não da fonte, ou, apenas, o meio social). Assim, no plano da reflexão sobre a mediação da realidade, a Bibliopsicologia, como ciência em elaboração por Roubakine, procura criar métodos rigorosos e testáveis para restaurar a correspondência entre não importa qual mnéma (do erudito ao camponês, do professor ao proletariado das fábricas), não importa qual realidade. (Roubakine, (1922) 1998a)
Do ponto de vista do meio ou ambiente social (isto é, de uma teoria do milieu social), no capítulo primeiro, quando procura por definir a Bibliopsicologia, fundar sua cientificidade perante os demais domínios disciplinares nascituros, bem como o objeto, os objetivos, as leis e as aplicações desta ciência, Roubakine (Roubakine, (1922) 1998a) fundamenta uma estrutura social como base para compreensão da pessoa leitora. A experiência desta, afirma o discurso roubakiniano, depende de seu meio social. Segundo Roubakine ((1922) 1998a), acima de qualquer outra base, as diferenças e as relações entre pessoas leitoras dependem das condições do meio social de cada uma. Esta “lei”, ou seja, a lei oriunda de uma “teoria do meio social”, determina os modos de compreensão do conhecimento de cada pessoa em seu contexto.
De acordo com esta fundamentação, uma autoria, ou uma obra, uma pessoa leitora, não representam manifestações na realidade de uma experiência individual pura, mas fruto da vida social. É neste, no meio social, que a individualidade se constitui e se desenvolve. Dentro da sociedade, a pessoa leitora vive, age e transforma o próprio meio social onde se encontra. (Roubakine, (1922) 1998a) Logo, o mnéma é também parte de um construto social, resultante e resultado, força de ação e de mudança do meio social, sendo este, também, o locus onde a mediação se institui.
A questão da mediação em Roubakine conduz-se ainda para uma figuração metodológica estrutural da epistemologia, a saber, o debate sobre os métodos dedutivo e indutivo. Em seu capítulo terceiro do primeiro volume da Introduction à la Psychologie Bibliologique, “Os métodos da biblio-psicologia. - A aplicação de métodos científicos gerais ao estudo dos fenômenos biblio-psicológicos” (Les méthodes de la biblio-psychologie. L'application des methodes scientifiques générales à l'étude des phénomènes biblio-psychologiques), Roubakine argumenta que a diferença fundamental entre dedução e indução consiste não no fato de a primeira passar do geral para o particular e a segunda do particular para o geral, mas no fato de, nas ciências indutivas, tratar-se sobre um conhecimento imediato, preciso e positivo, enquanto na dedução é uma questão de conhecimento hipotético que ultrapassa os limites da presença imediata dos fatos.
Conforme o autor, os fatos que nós próprios observamos são de natureza intelectual, emocional e volitiva. O método científico bibliopsicológico deve ter como horizonte retirá-los, tais fatos, desse repositório, da memória, do nosso subconsciente, e usá-los, mesmo que seja apenas para as circunstâncias mais triviais da nossa vida quotidiana, respondendo, assim, pela construção de um meio, uma mediação, uma experiência sociotécnica fundada na metodologia biblipsicológica. O pensamento roubakiniano está, em sua práxis, desde 1880, procurando compreender como, ao identificar tais fatos, convertê-los em processo de transformação das pessoas e de suas comunidades, ou seja, uma práxis (vinculada a bibliotecas, leituras, pessoas leitoras).
É fato que, profundamente influencida pelo que podemos chamar de uma revolução dos estudos psicológicos em seu tempo, Nicolas Roubakine procurasse compreender a possibilidade de provas de contato imediato – sem apoio dos órgãos dos sentidos, na ausência de quaisquer formas manifestas de mediação para compreensão que avança, em seu capítulo quinto, sob a expressão de “eu dos outros”. Possível ou não, o filósofo russo estava convicto de que, com a metodologia bibliopsicológica, o seu percurso científico integra o corpus de investigação de fenêmenos objetivos, que reúne coletâneas de fatos sobre o que se dá através de uma experiência mediada.
Os métodos mediados, pois, no contexto bibliopsicológico, abrem vasta empresa científica a partir da reflexão sobre a pessoa leitora. Investiga-se, neste âmbito, o conjunto de modos de extroversão, as manifestações externas do “eu do outro”. Roubakine ((1922) 1998a) expõe sua teoria social da “reencarnação”, considerada pelo autor uma espécie de “mentapsicose” do pesquisador, registro relevante para o entendimento de sua teoria da mediação.
A “reencarnação”, no plano material, e não metafísico, é a faculdade de um indivíduo imaginar, compreender e sentir a alma do outro, seus pensamentos, seus sentidos, seus estados psíquicos, desejos, tendências, ou seja, o conjunto de manifestações do seu “eu”. De modo elucidativo, Roubakine ((1922) 1998a) diz-nos que a “reencarnação” é a capacidade de se colocar no lugar de outro indivíduo, isto é, como se se estivesse a pedir emprestado a sua alma e o seu corpo. O filósofo russo adota como exemplo a metalinguagem da arte, como um artista dramático que encarna a personagem cujo papel ele desempenha, ou um romancista vive com os seus heróis.
A reencarnação é, pois, um método de reconhecimento e de simulação (antes de um conhecimento prévio e pré-determinado na recepção) no meio social, da pessoa leitora no processo do pesquisador se colocar no seu lugar, compreender a sua vivência em seu processo de leitura, no impacto que determinada obra realiza dentro do contexto do seu mnéma. A partir da obra Essai sur l'imagination créatrice, publicada em 1900, de Théodule Ribot (1839-1916), Nicolas Roubakine procura descrever pontualmente o método da reencarnação.
Celui qui se réincarne ne fair que choisir dans son propre mnéma certains éléments lesquels, à son avis, existent dans le « moi d'autrui » qu'il se propose d'étudier. C'est avec ces éléments qu'il construit l'image de celui qu'il étudie. Donc, la réincarnation dépend des trois facteurs suivants: 1º. Du volume, de la qualité et de la richesse de mémoire, 2º. de la faculté de choisir certains éléments dans son mnéma et 3º. de la faculté de les combiner en construisant l'image psychique du « moi d'autrui ». D'ailleurs ces facultés ne coïncident pas toujours avec les possibilités. De plus, la réincarnation de l'explorateur en l'exploré dépend des éléments du mnéma qui ont été excités chez le premier par les paroles, les actes et l'aspect extérieur du second. (Roubakine, (1922) 1998a, p. 228)
O reencarnador apenas escolhe do seu próprio mnéma certos elementos que, em sua opinião, existem no “eu de outro” que ele se propõe estudar. É com estes elementos que ele constrói a imagem do que está a estudar. Portanto, a reencarnação depende dos três fatores seguintes: 1. o volume, a qualidade e a riqueza da memória, 2. a faculdade de escolher certos elementos do seu mnéma e 3. a faculdade de os combinar a fim de construir a imagem psíquica do “eu do outro”. Além disto, estas faculdades nem sempre coincidem com as possibilidades. Além disso, a reencarnação do explorador no explorado depende dos elementos do mnéma que estavam excitados no primeiro pelas palavras, os atos e o aspecto externo do segundo. (Roubakine, (1922) 1998a, p. 228, tradução nossa)
Roubakine ((1922) 1998a) remonta as caracterizações de perfis de pessoas leitoras feitas por Ribot, por exemplo, “plásticos”, “confusos”, “místicos”, “utópicos”, “científicos”, “práticos”, “mecânicos”, “comerciais”, procurando a relação entre introspecção e extroversão para o mergulho no exercício contínuo de se colocar no lugar do outro para compreender suas formas de compreensão e estabelecer, pela metodologia bibliopsicológica, processos mediadores de transformação de seu mnéma.
Para além de Ribot, outra fonte mencionada por Roubakine ((1922) 1998a) para o estudo do conhecimento a partir dos mnémas dentro do método da reencarnação, é a pedagogia clássica de Jan Amos Comenius (1592-1670), manifesta a partir de sua obra fundacional para a educação no Ocidente, Didactica magna, publicada em 1649, e seu método demonstrativo de ensino, procurando, através de imagens decorativas do livro, preencher o mnéna das crianças, leitoras iniciantes, com novas imagens visuais. O método comeniusiano, que procura um modelo universal de ensino, é demonstrado por Nicolas Roubakine como possibildiade de agrupar na memória da pessoa leitora os resultados de outras sensações vividas em outros locais (incluindo experiências visuais e táteis). Do livro ao teatro, do teatro ao cinema, a obra de 1922 de Roubakine aponta para diferentes formas de relação entre o método mediado da “reencarnação” e a compreensão do “eu do outro”.
Como crítica das relações entre uma visão da fonte e outra, da recepção, podemos afirmar, no método bibliopsicológico de Nicolas Roubakine, está a mediação realizada pela dramaturgia contemporânea em sua época. Roubakine ((1922) 1998a) apontava ali que era de se esperar que os teatros populares fossem utilizados para preencher sistematicamente o mnéma de indivíduos retirados de todos os estratos da população. Porém, observa o filósofo russo, aquele teatro de seu tempo não satisfazia as exigências bibliopsicológicas, por sua natureza convencional, distante das relações de singularidades da vida do povo (formas domésticas, costumes, rituais de morte, folclore). Deste modo, a Bibliopsicologia buscaria como princípio um “sistema quando exige aos ‘popularizadores’ que componham as suas obras apenas com palavras que correspondam ao mnéma tanto do escritor como dos leitores”, ou seja, a aderência e o reconhecimento do meio social das pessoas leitoras. (Roubakine, (1922) 1998a, p. 230)
Por fim, reflete-se o discurso roubakiniano, a sistematização dos estudos do mnéma através das relações com os diferentes artefatos de manifestação da conexão entre pessoa cognoscente e registros sensíveis para excitação do conhecimento é um processo contínuo de mutação. Não há dúvida, afirma o pensamento roubakiniano entre o mediato e imediato, que, ao aproximar sistematicamente o mnéma do pesquisador dos mnémas daqueles que está a estudar, a compreensão mútua pode ser consideravelmente reforçada. Mas este reforço tem os seus limites. Antes de mais nada, a “reencarnação” nunca está completa, pontua Roubakine ((1922) 1998a). É apenas parcial, porque o mnéma do pesquisado contém, na visão roubakiniana, elementos que não são conhecidos pelo pesquisador ou que estão para além da sua compreensão, demarcando, pois, os limites de sua teoria da mediação, as fronteiras de uma teoria do conhecimento oriunda da Bibliopsicologia.
5. Considerações finais
A proposta do estudo realizou um percurso do núcleo do pensamento de Nicolas Roubakine sobre mediação, presente, objetivamente, no quinto capítulo do volume primeiro da obra Introduction à la Psychologie Bibliologique, publicada em 1922, ao reencontro de pressupostos presentes nas teorizações dos capítulos anteriores. A travessia de acesso ao pensamento roubakiniano, junto à seara dos estudos sobre mediação como conceito e práxis, centralmente entre as tradições de pesquisa de Brasil e França, foi também aqui descrita.
A teoria da mediação em Roubakine ((1922) 1998a,b) antecipa, de modo seguro, distintas formas de definição do conceito e de sua operacionalização como categoria psicológica e sociológica (reflexão e ação sobre o sujeito em seu meio social), demonstrando a vanguarda dos estudos e das formulações teóricas do pensador russo. A mediação está em sua obra discutida como categoria epistemológica, conceitual e praxiológica.
A repercussão do pensamento roubakiniano ainda carece de ampla investigação na pesquisa científica brasileira e internacional. De um lado, o percurso de marcas de seus conceitos, como mediação, em fontes canôninas em Ciência da Informação, como em Paul Otlet (1934) e na teoria dialética de Robert Estivals (1968, 1970, 1978), além de sua presença na produção teórica de países do Leste Europeu e de África, pode ser claramente reconhecido. De outro, verifica-se sua ausência nos discursos de fundamentação da Ciência da Informação, e da própria teoria da mediação, a partir de fontes anglo-americanas de demarcação das correntes epistemológicas de constituição do campo, bem como na produção recente, do século XXI, sobre mediação, incluindo aquelas oriundas da seara da francofonia. Esta pesquisa contribui, pois, como um exercício de identificação das raízes de uma teoria da mediação psicossociológica em Ciência da Informação a partir do pensamento roubakiniano.
Em suas últimas palavras, ao término de seu volume 1 da “Introdução à Psicologia Bibliológica”, ao se debruçar sobre os dilemas de compreender o “eu” e o “eu dos outros”, emerge em Roubkaine (1998a) uma teoria da mediação entre as condições do conhecimento mediato e do conhecimento imediato. O pensador russo nos demonstra a trajetória de suas ideias, a procura pelos limites do conhecimento, a partir das pessoas leitoras, demarcando o caráter epistemológico e aplicado de seu pensamento, assim como o papel de um questionamento sobre a mediação na vanguarda da construção epistemológica da Ciência da Informação.