1. Introdução: Mediação, um conceito polissêmico
A noção de mediação caracteriza-se por ser polissêmica, sendo de uso corrente tanto nas interpretações dos processos sociais, como nas descrições de atividades práticas de diversos setores, em especial os de informação e comunicação. No campo das Ciências Sociais o conceito geralmente encontra-se ligado às chamadas “teorias da ação”: «ações sociais são sempre parte de sistemas mais amplos e de processos de compreensão intersubjetiva, o que introduz a questão do papel do agente (‘mediação humana’) nos processos através dos quais as ações são coordenadas.» (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 03). Trata-se de processos de interação entre os membros de grupos, comunidades ou sociedades, que permitem o estabelecimento e a sustentação dos laços de sociabilidade, constituindo assim, numa perspectiva habermasiana, o chamado mundo da vida. A linguagem e a ação comum são os fatores privilegiados de mediação. Neste sentido mais amplo, o conceito de mediação é tributário das filosofias dialéticas de Hegel e de Marx, vinculando-se, metodológica e epistemologicamente, à impossibilidade do conhecimento imediato constitutivo da realidade e da produção material da vida (Martins, 2019). Nesta tradição de pensamento, a mediação apresentava-se, portanto, muitas vezes como conexão indireta para a compreensão da realidade, assumindo papel estratégico tanto na construção como no desvelamento da ideologia (Williams, 2007, p. 275).
As apropriações e aplicações desta abordagem sociológica implicam numa polissemia de concepções, relacionadas à diversidade de contextos, «um conjunto de práticas sociais, que se desenvolvem em setores institucionais variados e que visam construir um espaço determinado pelas relações que nele se manifestam» (Caune, 2014, p. 73). Desse modo, instituições como a escola, a mídia, as unidades de informação e cultura, de um modo geral, podem ser compreendidas e analisadas a partir das relações interpessoais que promovem e ajudam a compartilhar, estabelecendo o território pragmático no qual as mediações se constituem, configurando o campo empírico no qual podem ser observadas. Por outro lado, os fenômenos culturais, embora vivenciados pelos indivíduos e grupos no âmbito das instituições, só obtém suas significações a partir de um quadro histórico e social, e assim «o acesso à compreensão dos fatos culturais passa pela análise das manifestações perceptíveis e das relações de significação que elas estabelecem com aquele que as recebe» (Caune, 2014, p. 61).
Ao considerarmos a mediação nesta perspectiva, percebemos que se trata de um conceito plástico e flexível, que praticamente impossibilita uma única definição consensual, na medida em que os sentidos das práticas que o recobre derivam de realidades distintas entre si. No âmbito das instituições, cristalizou-se a concepção de que a ação de mediação não é o estabelecimento de uma simples relação entre dois termos de mesmo nível, mas que em si ela é produtora de um “algo a mais”, de um estado mais satisfatório (Almeida, 2014; Davallon, 2007). Uma concepção que abrange atividades muito diferenciadas entre si, que vão desde os sentidos correntes de “atendimento ao usuário” às ações de um agente cultural em uma dada instituição (biblioteca, museu, arquivo, centro cultural), passando pela elaboração de serviços e produtos destinados a introduzir o público num determinado universo de informações, conhecimentos e vivências (de catálogos a curadorias, de oficinas a grupos de leitura etc.), chegando à elaboração de políticas de capacitação ou de acesso às tecnologias de informação e comunicação (TIC), à mediação tecnológica proporcionada por ferramentas informacionais em rede (portais, sites, weblogs) etc.
Neste último exemplo é perceptível como a natureza das mediações tem incorporado os insumos da mudança tecnocientífica e de sua apropriação sociocultural, envolvendo uma série de processos. Em conjunto, estes processos podem ser entendidos como “lógicas sociais” da informação-comunicação, que, embora possuam de certa forma uma dinâmica própria, independente das TIC, recebem delas impulsos dinâmicos que as vão conformando no decorrer do tempo. Miège utiliza o termo “enraizamento” social das TIC procurando destacar os fatores que levam os indivíduos a se apropriarem das tecnologias, incorporando-as ao seu cotidiano, num processo que muitas vezes implica na combinação da reconfiguração de novos usos para as ferramentas e na criação de novos hábitos e atitudes sociais. (Miège, 2009). Ressalta aqui, claramente, a relação intrínseca entre tecnologia e cultura, no seu sentido mais amplo.
Stuart Hall (1997) afirma que a cultura passou a ocupar um papel central no mundo contemporâneo, apontando uma série de deslocamentos no âmbito do cotidiano, decorrentes de mudanças globais na reorganização socioeconômica das sociedades contemporâneas: crescimento do setor de serviços, novos estilos de vida relacionados ao empoderamento das mulheres, às mudanças nas estruturas familiares e nas relações intergeracionais etc., que possuem um reflexo cultural. Ele chama especialmente a atenção para o papel dos meios de comunicação tradicionais e a formação de grandes conglomerados midiáticos, e o papel das TIC na disseminação de informação e conteúdos simbólicos. Finalmente, aponta a centralidade na cultura na construção das subjetividades, de uma dissolução gradual das fronteiras entre o social e o psíquico. Neste sentido, mostra que a cultura se tornou um campo de disputas por seu controle: «no cerne desta questão está a relação entre cultura e poder. Quanto mais importante – mais ‘central’ – se torna a cultura, tanto mais significativas são as forças que a governam, moldam e regulam» (Hall, 1997, p. 29). No âmbito da globalização, essa disputa caracteriza-se por processos de esvaziamento do Estado, alijado de suas responsabilidades na regulamentação das ações culturais, transferidas crescentemente para o mercado, na forma de privatizações ou de repasse de recursos públicos para a administração por parte de empresas ou outras entidades.
A Internet encarnaria o mais recente dos meios de comunicação e informação que possibilitam o surgimento de redes sociais cada vez mais complexas onde, paradoxalmente, o individualismo pode desenvolver-se. O desenvolvimento de projetos individuais e coletivos nas sociedades contemporâneas encontra na Internet a possibilidade de uma extensão dos limites físicos do cotidiano, gerando canais de comunicação, comunidades e redes de afinidades. O crescimento exponencial da internet tem resultado, no entanto, numa grande fragmentação da informação, inerente à sua própria natureza peculiar, o que amplia a dificuldade de divulgação de corpos de conhecimento especializados, como, por exemplo, a ciência e as artes. Além disso, também é necessário refletir acerca das estruturas de interpretação utilizadas para passar da recepção das informações à sua “apropriação” e incorporação como conhecimento. É fato que as pessoas agora se relacionam diretamente com as informações e o conhecimento, de forma desintermediada? O desenvolvimento das tecnologias digitais em rede afetou em que medida a figura tradicional do mediador cultural? Que novas figuras de mediação emergem do atual contexto sociotécnico? Grande parte dos debates sobre as concepções de mediação da informação/mediação cultural, em alguma medida, incide sobre essas questões. O objetivo deste texto é trazer alguns elementos para a compreensão e problematização destas discussões.
2. Mediação, desintermediação, algoritmos: o espírito das tecnologias digitais
A disseminação das tecnologias de informação e comunicação, em especial nas décadas de 60 a 80, e sua posterior conexão em redes e ampliação das possibilidades de digitalização da informação a partir da década de 90, geraram um clima otimista baseado nas promessas que se abriam em relação ao acesso e à circulação de informação e conhecimento, vislumbrando os avanços potenciais em diversas dimensões – na política, na economia, no trabalho, na melhoria das condições de vida. Consoante a este horizonte, emergiram perspectivas que assumiam a defesa de uma autonomia cada vez maior dos usuários a partir do que podemos chamar de uma primeira onda de concepções de “desintermediação”, tributária de autores como Pierre Lévy e Ina Fourie.
Para Lévy (2000), graças à internet e à ação comunicacional dos usuários, ocorreria um processo de descentralização que enfraqueceria os meios tradicionais de comunicação como mecanismo de mediação – o controle das informações, de sua filtragem e disseminação seletiva pelos mediadores institucionais tradicionais presentes numa concepção de sociedade de comunicação de massas (englobando de estações de TV, rádios e editoras até escolas e bibliotecas). Ele ressalta que os processos anteriores à desintermediação eram simplórios e despersonalizados, ao contrário dos novos processos resultantes das atividades dos próprios indivíduos, mais bem sintonizados às suas necessidades e interesses. Nessa perspectiva, a interatividade e o protagonismo dos usuários modificariam a condição anterior, já que agora poderiam ser seus próprios mediadores, uma vez que a internet propiciaria sua autonomia frente as suas necessidades informacionais e culturais. Diferente da tipologia comunicacional anterior, marcada pela distribuição de informação de “um para todos”, a internet permitiria uma distribuição da comunicação de “todos para todos”. Fourie, por sua vez, reconhece que a ampliação do acesso à internet torna inevitável que as pessoas realizem suas próprias buscas de informação, gerando sistemas desenvolvidos de forma mais “amigável”, proporcionando maior independência e autonomia a seus usuários, e ampliando o grau de desintermediação, mas ainda assim não descarta o papel dos mediadores: «Se mais usuários finais são capazes de assumir a responsabilidade de suas próprias buscas de informação - ou ao menos algumas delas - a atenção dos mediadores pode orientar-se para outras questões importantes» (Fourie, 2001, p. 281, tradução nossa).
Esta nuance da posição expressa por Fourie já incorpora, em alguma medida, a oposição que a noção de desintermediação iria receber à época. Para os críticos, como Wolton (2003), o simples acesso à informação não implicaria automaticamente num aumento da capacidade de construção do conhecimento. Numa perspectiva tributária de Bourdieu, ele afirma que o desenvolvimento das competências intelectuais relacionadas à elaboração de estratégias de busca, compreensão e apropriação da informação ainda é o fator predominante e os mediadores seriam os facilitadores desse processo. Esses mediadores exerceriam um papel de extrema importância: «começa-se a perceber a força de emancipação e de progresso que existe no estatuto dos intermediários. A emancipação não reside mais em suprimir os intermediários, mas, ao contrário, em reconhecer o seu papel» (Wolton, 2003, 136)
O contexto que permitiu a construção de um conceito como o de desintermediação é o do desenvolvimento de produtos e serviços informacionais crescentemente mais sofisticados e simultaneamente de fácil utilização por parte dos indivíduos. Basta lembrar que o Google havia surgido em 1998, contribuindo, no horizonte do surgimento da sociedade da informação, juntamente com seus congêneres, para o processo de “desintermediação”, cumprindo o papel de propiciar aos usuários acesso às informações, com precisão e segurança, que eles necessitavam. Na verdade, para autores como Eli Pariser (2012), essa era uma concepção ilusória, sendo, na verdade, limitadora das possibilidades de autonomia abertas pela internet. Para ele, esta concepção assenta-se sobre dois lugares-comuns acerca dessas tecnologias e de suas aplicações na internet. O primeiro seria a própria concepção de desintermediação, a promessa de que estas tecnologias eliminariam a intermediação, proporcionando uma experiência “direta” do usuário com o universo da informação. O segundo lugar-comum seria a promessa de que elas proporcionariam resultados mais “satisfatórios”, por estarem mais afinadas às características de cada usuário. Para o autor, as mediações não apenas permaneceram, como se multiplicaram, graças aos algoritmos que regem as dinâmicas destes aparatos, que ele descreve como “filtros invisíveis” que são o cerne dos mecanismos de busca.
O que Pariser demonstra, em sintonia com toda uma gama de autores que posteriormente se debruçará sobre o tema, é que essas informações, se atrelam aos interesses corporativos das grandes empresas e à lógica de consumo do mundo contemporâneo, não sendo, portanto, neutras. Inseridos dentro das “bolhas”, é praticamente impossível conhecer seu grau de parcialidade. O que o autor constata é que a tecnologia, que deveria nos proporcionar maior controle sobre nossas vidas, aos poucos o está retirando. Parece ser este o mote que irá inspirar toda uma literatura crítica aos mecanismos implícitos de controle, vigilância e modulação do comportamento presentes nas TIC (por exemplo, Silveira, 2016; O’Neil, 2016; Morozov, 2018, entre diversos outros), em grande medida certificada e corroborada em suas conclusões pelos desdobramentos decorrentes da pandemia do coronavírus em anos recentes.
Este período testemunhou um crescimento exponencial da circulação e do acesso à informação que, entretanto, veio acompanhado de igual crescimento da circulação de informações falsas, discursos de ódio, teorias da conspiração etc. Este fenômeno teve trágicas consequências, desde pessoas que vieram a tomar decisões baseadas em mentiras e distorções, até a expansão de comportamentos sociais autoritários (muitas vezes violentos e preconceituosos) e de negação da ciência. A concepção de desintermediação da informação cunhada neste período, diferentemente daquela examinada anteriormente, não trata de um processo efetivo no qual a relação com a informação deixaria de ser mediada. Na verdade, isto é impossível: trata-se antes da disseminação da convicção de que o acesso à informação por determinados meios e canais diferenciados seria “direta” e não mediada. Esta diferenciação entre certos meios e outros se fundamentaria num processo que envolve a desconfiança no “sistema”, nos meios consolidados e legitimados de mediação da informação. No atual fenômeno de desintermediação da informação ocorreria, na visão de seus adeptos, uma “livre” circulação de mensagens sem contrapeso institucional em determinados meios, livres da influência do sistema – isto é, no fundo, sem verificação e sem certificação por ação profissional que possa ser responsabilizada. Trata-se de um processo que envolve outras questões correlatas, como o crescimento de facções políticas de extrema direita organizadas a nível global e a disseminação de teorias da conspiração aliadas ao uso maciço de Big Data, que não poderemos explorar no âmbito deste texto (para maiores discussões sobre o tema, vide Da Empoli, 2020)
Estas considerações demonstram que as conexões entre cultura e aplicações tecnológicas tornam-se cada vez mais imbricadas, não admitindo análises ingênuas ou simplistas, mas reflexões que levem em conta a complexidade de possibilidades abertas (e fechadas) que apresentam os usos e apropriações de qualquer tecnologia. As tecnologias tanto fazem novas coisas como desfazem as antigas; assim, «os usos de qualquer tecnologia, são determinados, em grande parte, pela estrutura da tecnologia em si, isto é, que suas funções resultam de sua forma» (Postman, 1994, p. 17) Para além e em relação com o poder das grandes corporações, trata-se, no âmbito da vida cotidiana, de um conjunto de transformações na natureza da visibilidade e nas possibilidades de participação na vida social e política cujo significado ainda é difícil de estimar.
Uma maneira de refletir sobre estas questões nos é sugerida por Carlos Scolari (2019), quando adota as metáforas possibilitadas pela noção de interface para compreender essas interrelações: a interface como dispositivo de comunicação, a interface como instrumento, a interface como conversação, a interface como lugar de interação. (Scolari, 2018). A perspectiva de Scolari, que destaca o caráter interacional e plástico das interfaces, sintoniza-se com o pensamento de Michel de Certeau (1994), particularmente quando destaca os modos de fazer dos indivíduos, suas estratégias e táticas que são construídas a partir dos lugares e contextos que ocupam. Apesar das estruturas hegemônicas de poder, ancoradas nas condições iníquas de possibilidades, fruto de sociedades nas quais os recursos são desigualmente distribuídos, estes autores consideram que não há sistema de dominação que não permita, ainda que minoritariamente, formas de apropriação distanciadas ou subversivas.
Está claro que nem todos os indivíduos, grupos ou organizações terão condições de fazer uso pleno dessas possibilidades, por seus distintos graus de conhecimento, poder ou visibilidade. Mas vale lembrar que os campos da vida social e política foram e continuam sendo reconstituídos pelas interações e visibilidades possibilitadas por diversas formas de apropriação das tecnologias, influenciando os modos pelas quais o poder pode ser exercido (Almeida, 2022b). Isto é válido para o presente e para períodos anteriores, onde a apropriação de tecnologias emergentes e reconfigurações da ordem dos saberes e expressões simbólicas, bem como dos circuitos de circulação e legitimação cultural relacionados, proporcionaram o surgimento de novas figuras de mediação e seus avatares. O caso do surgimento da crítica cultural, em especial a literária, é exemplar.
3. A Crítica, os críticos e a mediação cultural
O que historicamente se convencionou denominar como crítica cultural corresponde a um rol de atividades ligadas a redes e canais institucionais diversificados, do jornalismo à universidade, passando pelas revistas especializadas e, mais recentemente, pela televisão e pela internet. A esta diversidade propriamente institucional soma-se outra, relacionada à heterogeneidade de operações discursivas, relacionadas a distintos campos (literatura, cinema, teatro, música, moda, comportamento etc.) cujo laço comum não é facilmente identificável. Distintos usos e hábitos estabeleceram afinidades e parentescos entre as operações intelectuais reunidas sob o conceito genérico de crítica, constituindo-a numa instituição cultural da Modernidade, correlacionada a um sistema de produção e circulação de informações qualitativas sobre bens culturais.
A partir de meados do séc. XVIII, ocorre uma maior produção de literatura e modificações em sua forma, com o surgimento e a consolidação do romance como nova forma literária. Assim, a necessidade social da literatura e a necessidade literária de um público leitor se imbricaram mutuamente (Watt, 1990). A ampliação da oferta de obras, juntamente com a existência de um público leitor leigo criou novas necessidades. Quem poderia responder sobre como obter informações sobre os livros existentes, ou apresentar chaves para compreendê-los e interpretá-los? É a partir destas questões que se esboça inicialmente a figura do crítico como mediador e da crítica como instituição de mediação sociocultural.
A institucionalização da atividade crítica, como a conhecemos e ainda é praticada hoje, é um produto do século XIX. Isto porque antes do século XIX existiam críticos, mas não existia a crítica enquanto tal, entendida como ação relacionada a uma camada profissionalmente preparada para produzir opiniões autorizadas sobre a produção cultural – livros, exposições, peças teatrais, apresentações musicais. Desse modo, a crítica é uma categoria cultural moderna, sustentada pelo princípio do caráter relativo dos valores culturais, assim como pelo postulado romântico do valor da originalidade e sobre a idéia da necessidade de uma seleção e de uma eleição de obras, capazes de guiar o público frente a uma produção cada vez mais ampla e diversificada. Por outro lado, é importante não perder de vista que esses valores são geralmente absolutizados pela própria construção de autoridade e legitimidade da crítica, observando a lógica que rege a dinâmica da hierarquia dentro dos campos culturais na perspectiva de Pierre Bourdieu (1979). O crítico emerge, portanto, como uma figura profissional da mediação, sendo sua primeira forma de articulação institucional o jornalismo.
Importa destacar como a institucionalização da crítica cultural profissional, seguida posteriormente pela crítica acadêmica universitária e as constantes comunicações entre elas (os cadernos culturais, a crítica de rodapé, as revistas especializadas etc.) transformou-se em importante referência para os mediadores que atuavam nas instituições educacionais e informacionais-culturais (bibliotecas, museus, centros culturais etc.) No caso das manifestações artístico-culturais, a instituição da crítica desempenhou papel fundamental. Vale lembrar aqui as perspectivas complementares de Becker, 2009 e Bourdieu, 1982, em relação ao papel das instituições no que tange à delimitação de fronteiras entre o que é considerado artístico e o que não é, que envolve a constituição de cânones, convenções e comunidades interpretativas. No caso das atividades de mediação da informação cultural e/ou artística, estamos diante de um processo complexo, que implica um conjunto de operações e decisões que demandam, além da capacidade técnica dos mediadores, sensibilidade cultural e certo grau de habilidades criativas. Isto pode ser melhor entendido pelo conceito de comunidade interpretativa de Becker, compreendida como «a rede de pessoas que faz uso de uma forma particular de representação – partilha algumas regras que governam aquilo em que seus membros deveriam acreditar e quando e por que deveriam acreditar nisso» (Becker, 2009, p. 76). A construção/desconstrução de representações sociais, como no caso das mediações culturais, depende do modo de compreensão dos interlocutores: podemos sempre nos perguntar, portanto, a quem se destina aquela representação e quem compreende o que ela quer dizer. O tema, a escolha de linguagens, o capital cultural implícito para sua apropriação, entre outros fatores, determina o aumento ou a restrição do público, e, indiretamente, a maior ou menor necessidade de mediações subjacentes.
Desde que surgiu, a crítica/mediação cultural passou por transformações, nenhuma tão radical como a que ocorreu recentemente, particularmente em função da crescente oferta de bens culturais. Isto não exclui, também, o questionamento de determinados paradigmas estéticos identificados com a modernidade artística ocidental, no âmbito das discussões sobre a pós-modernidade, as críticas feminista e decolonial, entre outras questões. Uma conseqüência importante para as análises que se apóiam na perspectiva desenvolvida por Bourdieu é o fato de que as fronteiras entre os subcampos tornaram-se cada vez mais fluídas, bem como a hierarquia entre os mesmos; as trocas simbólicas e materiais são aceleradas, não respeitando, inclusive, as fronteiras nacionais. Num contexto globalizado, tal processo de diluição das fronteiras simbólicas não pode ser circunscrito somente à circulação de conceitos e códigos culturais, mas considerado amplamente, contemplando as práticas sociais e econômicas, nas alterações promovidas nas disputas pelo poder local, propiciando alianças estratégicas ou disputas com os poderes externos. As múltiplas possibilidades de interações transfronteiras e níveis (erudito, popular e massivo) lutam contra a inércia dos mecanismos de poder simbólico que caracterizam os campos culturais. Como observa Canclini, «a dissolução das divisórias que os separam é vivida pelos que hegemonizam cada campo como ameaça a seu poder. Por isso, a reorganização atual da cultura não é um processo linear» (Canclini, 1997, p. 360).
O acesso cada vez mais amplo às produções culturais e às informações acerca delas, proporcionado pelas TIC nesse novo contexto histórico, embaralhou os níveis de elaboração, circulação e fruição das obras, requerendo uma maior complexidade na análise desses fenômenos, bem como o papel dos intermediários culturais nesse processo – assim como compreender as novas figuras nas quais se encarnam.
Um elemento importante a ser considerado é o papel mediador proporcionado pelas tecnologias entre o consumo cultural público e o privado. Nunca se assistiu, por exemplo, a tantos filmes e seriados como hoje em dia; entretanto, essa fruição é principalmente doméstica, através inicialmente da televisão, do vídeo e posteriormente, da internet, pelas redes sociais e serviços de streaming. Registra-se uma tendência mundial de decréscimo das participações em instalações públicas (cinemas, teatros, salões de concerto, auditórios) em contrapartida a uma oferta de cultura à domicílio (rádio, televisão, vídeo, internet). Isso provoca uma grande modificação na concepção das atividades culturais. Hoje, o campo cultural é uma esfera transmidiática que integra cinema, televisão, música, vídeo, quadrinhos e internet (envolvendo revistas, fãs-clubes, livrarias especializadas, sites, blogs e comunidades virtuais), conectada à oferta de atividades presenciais (shows, convenções, “vivências”), que dialogam com parcelas mais ou menos amplas, específicas e segmentadas, de público.
Atividades culturais mais antigas e tradicionais, como a leitura, a audição musical, a frequência ao teatro e mesmo o cinema, se modificaram, e novas se consolidaram, como os videogames. A internet tem sido apontada muitas vezes como a vilã desta situação, particularmente em relação à leitura, com um prognóstico bastante disseminado, quase um senso comum, relativo ao “fim dos livros” ou ao “fim dos leitores”. Um grande exagero, com certeza. As formas de leitura e os formatos e suportes de textos se diversificaram, gerando outros tipos de leitor que não necessariamente substituem o antigo tipo de leitor, mas que coexistem com ele – muitas vezes, num mesmo indivíduo. Além disso, a internet tem propiciado a revivência (ou pelo menos a renovação) dos tradicionais “Clubes de Leitura”, travestidos agora em comunidades de leitores ou plataformas sociais de troca de comentários e informação literária.
Talvez estejamos presenciando um realinhamento das atividades de mediação cultural, especialmente daquelas que se desenvolveram classicamente sob o guarda-chuva da crítica tradicional. Diferentemente de momentos anteriores, as tecnologias digitais em rede abrem a possibilidade de formação de espaços menos hierárquicos de circulação das informações. Em alguma medida, os próprios públicos e consumidores de cultura podem se transformar, eles próprios, em mediadores ou críticos. Este potencial de disponibilização de conteúdos em larga escala por parte dos indivíduos e grupos afetou, em alguma medida, o poder da mídia em geral, descentralizando parcialmente o oligopólio da enunciação midiática, propiciando o surgimento de novas figuras de mediadores. Nesse sentido, o surgimento das mídias sociais foi visto como um marco na abertura de novas possibilidades para a produção, circulação e fruição cultural. Por outro lado, vale lembrar que o capitalismo, na dinâmica dialética que lhe é peculiar, procura resolver estas contradições neutralizando, absorvendo e cooptando essas instâncias alternativas de potencial mediação crítica. Este complexo contexto é determinante para a compreensão das modificações nas concepções tradicionais de mediador cultural, assim como no surgimento de novas figuras de mediação.
4. A mediação digital: prosumers, influenciadores, booktubbers
A multiplicidade de conteúdos e formatos disponíveis nas redes infocomunicacionais, juntamente com as facilidades proporcionadas pelo formato digital para sua manipulação e reconfiguração possibilitam a recriação e a hibridização cultural por parte dos indivíduos e grupos, criando diversas possibilidades de apropriação cultural no âmbito de uma “cultura da convergência”, como a denomina Henry Jenkins (2009). Ele entende a cultura da convergência como o sistema que envolve fluxo de conteúdos por meio de múltiplas plataformas de mídia, cooperação de mercados midiáticos e comportamento migratório dos públicos. Este sistema envolve três conceitos:
- convergência dos meios de comunicação;
- cultura participativa e
- inteligência coletiva (Jenkins, 2009).
O autor enfatiza, em suas análises, que os papéis de “consumidor” e “produtor” seriam, hoje, intercambiáveis de acordo com os contextos e as circunstâncias, cunhando o neologismo “prosumer” para descrever esta situação. Resumidamente, ele argumenta que as atuais ferramentas tecnológicas possibilitariam aos consumidores tornarem-se também produtores de conteúdos, atuando como mediadores digitais. Como observa John Thompson, «os indivíduos, as ações e os eventos agora estão visíveis de maneiras que eles simplesmente não estavam no passado, e qualquer pessoa com um smartphone tem a capacidade de tornar as coisas visíveis para centenas ou até milhões de pessoas de formas que antes não eram possíveis» (Thompson, 2018, p. 35)
Para Jenkins, entre outras consequências dessa nova dinâmica cultural, podemos verificar a estruturação de condições que permitem a emergência e a sustentação de culturas especializadas ou culturas de “nicho”. Embora a ideia de uma cultura da convergência apresente-se como pertinente para a descrição de um processo cultural global que envolve a apropriação cultural mediada pelas tecnologias, características e condições decorrentes das especificidades de cada contexto influenciam essa dinâmica. Desse modo, Jenkins chega a afirmar que a apropriação tecnocultural se realizaria quase sempre como “gambiarra”, uma concepção atualizada da bricollage descrita por Michel de Certeau. De qualquer modo, realizando-se com maior ou menor grau de eficácia, a perspectiva de consumidores culturais mais ativos atuando na internet, entrevista pelo conceito de cultura da convergência, abre espaço para compreendermos melhor fenômenos como o surgimento dos influenciadores digitais.
Stig Hjarvard (2014) situa a emergência do fenômeno dos influenciadores digitais a partir de sua compreensão das mídias como estruturas institucionalizadas em suas características e formas de funcionamento específicas, que condicionam e permitem a ação humana reflexiva. Para ele, as mídias conseguiram um impulso próprio que lhes permitiu influenciar cada vez mais outras esferas sociais. O resultado é que a mídia se tornou institucionalizada dentro de outros domínios sociais, obtendo simultaneamente o status de instituição social em si mesma. Assim, outras instituições necessitam cada vez mais de recursos da mídia – o que demanda a habilidade de representar a informação, constituir relações sociais e conseguir atenção com ações comunicativas.
Considerando as características da comunicação mediada por computadores, quando falamos em “atores” não estamos nos referindo às concepções clássicas do termo, já que eles não são imediatamente discerníveis, sendo muito mais representações dos atores sociais, com construções identitárias no espaço da internet: «não são atores sociais, mas representações de atores sociais. São espaços de interação, lugares de fala, construídos pelos atores de forma a expressar elementos de sua personalidade ou individualidade» (Recuero, 2009, p. 25)Assim, podem ser representados por um blog ou um perfil de rede social. A dinâmica, portanto, é distinta, trata-se de «compreender como as conexões são estabelecidas. É através dessas percepções que são construídas pelos atores que padrões de conexão são gerados» (Recuero, 2009, p. 27).
No que respeita aos mediadores culturais –mais especificamente, os influenciadores digitais, como se autodenominam– ocorre uma interelação entre o ambiente digital e o presencial, definindo, de um modo geral, novas áreas para a atuação e influência desses sujeitos. Anteriormente, os mediadores culturais podiam se valer da legitimidade simbólica da tradição de um campo cujo conteúdo dominavam. No momento atual, esse mediador –o influenciador digital–, é um indivíduo que dispõe de certo capital simbólico e social, vendendo a si mesmo como uma commodity e se auto-construindo como uma “marca” ou “griffe”. Este tipo de status é obtido num ambiente teoricamente igualitário, por meio de basicamente dois elementos: 1) a atividade de “filtragem” (mediação) da informação que circula pela rede e chega aos diversos públicos; 2) os atributos pessoais de credibilidade, reputação e prestígio (Karhawi, 2016).
Vale lembrar que na internet há vários tipos de reputação, e quando se fala de “capital simbólico” e, ainda mais comumente, de “capital social”, não há uma ligação direta com Bourdieu – geralmente, quando se pretende estabelecer essa ligação, ela é mediada por um entendimento dos conceitos que a embasam a partir de uma leitura quantitativa de determinados indicadores selecionados na dinâmica das redes (Recuero, 2009). A “reputação”, portanto, não é simplesmente o número de leitores de um blog, ou o número de seguidores do Instagram ou Twitter. A reputação é associada às impressões que os demais autores têm de outro ator, ou seja, do que as pessoas pensam de um determinado nfluenciador, por exemplo. A reputação é uma percepção qualitativa per se. Não é a simples posição do nó na rede, ou mesmo, a avaliação de sua centralidade. É uma medida da efetiva influência de um ator com relação à sua rede, juntamente com a percepção dos demais atores da reputação dele. O que importa é destacar que o status de influenciador digital só é mantido mediante a produção de conteúdo e o relacionamento com a audiência. Em outras palavras, a manutenção do “capital simbólico” é fruto de uma atividade constante e monitorada pelos pares, pelo público e pelos algoritmos.
Para compreender um pouco melhor o fenômeno, examinemos mais de perto um caso específico de influenciador que detém mais claramente as características do que poderíamos entender contemporaneamente como mediador da informação cultural. São os booktubers –os comentadores de livros com canais de vídeo no Youtube– e que posteriormente invadiram outras redes como o Instagram e o Tik Tok. No caso específico destes influenciadores ligados à leitura e à literatura, seu surgimento insere-se num contexto de mudanças culturais correlacionadas às tecnologias digitais, que apresenta três dimensões: 1) à própria dimensão dos “influenciadores digitais”, desdobramento contemporâneo da temática dos mediadores culturais; b) a dimensão das mudanças ocorridas no campo literário e da leitura; c) a dimensão da “juventude”, tanto na perspectiva de um protagonismo dos jovens em diversos setores da sociedade, como também na perspectiva de uma “juvenilização” da cultura contemporânea, fruto, em grande parte, de uma maior apropriação dos recursos da internet pelas gerações mais jovens.
A virada do século trouxe uma série de mudanças relacionadas tanto a aspectos consolidados do campo literário (a produção crítica, os processos educativos de formação de leitores), como também a outros fenômenos recentes ou, ao menos, “reconfigurados” pelas tecnologias digitais em rede: clubes de leitura, clubes de assinatura de livros, redes sociais focadas em livros, feiras e festas literárias de amplo apelo midiático etc. A crítica literária na imprensa brasileira sentiu os impactos das TIC no campo do jornalismo como um todo, tendo seus espaços diminuídos, resvalando cada vez mais para um perfil burocrático, quase de press release publicitário. A produção dos booktubers é parcialmente herdeira dessa tradição (embora discutir o papel da crítica literária/cultural no Brasil atual demandasse muitas outras questões) e, ao mesmo tempo, se contrapõe a ela ao incorporar elementos como a “autenticidade” e as impressões subjetivas acerca da leitura como característica da sua produção (Almeida, 2022a).
Paralelamente, existe todo um cenário de mudanças no mercado editorial que interage com esse ambiente da internet, como o crescimento das redes varejistas de livros, o surgimento de corporações editoriais transnacionais e a importância crescente da figura de agentes literários especializados em sondagens de mercado. O campo literário passa a estabelecer estratégias de atualização formatos anteriores de relacionamento entre editoras e leitores, adaptando antigos modelos, como os clubes ou círculos de leitura e de assinaturas de livro aos formatos e às linguagens da internet. No caso de eventos como festas e festivais literários, ocorrem conexões entre a segmentação do mercado editorial e fenômenos como as expressões literárias identitárias – as literaturas feminina, negra e periférica – e a “ocupação”, ainda que limitada, dos espaços na internet, por essas e outras vozes, incluindo as dos booktubers (Almeida, 2022a).
A questão da “juventude” ou da “juvenilização” da cultura contemporânea vem sendo discutida a partir da relação estabelecida com as TIC e seus potenciais impactos em termos de novas configurações das sociabilidades específicas de uma cibercultura (Jenkins, 2009; Canclini, 2019; Couldry e Hepp, 2020). Uma concepção recorrente, que se transferiu do senso comum acadêmico para a sociedade mais ampla, foi a de que os jovens seriam “nativos digitais” – socializados em ambientes nos quais as tecnologias já fariam parte do cotidiano, praticamente possuindo habilidades “inatas” para seu uso, um mito descontruído, entre outros, por Sonia Livingstone (2011), que mostrou que há um exagero ou erro de avaliação em relação às propaladas habilidades dos jovens. Ela propõe um questionamento do senso comum acerca da habilidade dos jovens a respeito da internet, relacionando as deficiências sociais em promover de forma equitativa as condições de literacidade na internet. Já Néstor García Canclini (2019) lembra que não é mais possível conceber os textos, as imagens e sua digitalização como continentes separados. A internet amplia as possibilidades de ser leitor e espectador, e as redes virtuais modificam os modos de ver e ler, assim como as formas de sociabilidade. Ele observa que a expansão do Youtube, no âmbito da consolidação de uma cultura da internet, foi um momento de abertura de possibilidades comunicativas e profissionais para os jovens com o surgimento de diversas figuras de youtubers,como os booktubers. Por outro lado, lembra que estas atividades se revestem de um caráter social desigual, já que uma das características do Youtube é homogeneizar comportamentos distintos, individuais e grupais, ao ordená-los sem que afetem as regras e o poder dos grupos midiáticos tradicionais.
Essa discussão social de recorte etário aponta, portanto, para diferentes tipos de leitores para diferentes suportes de leitura. Dados de uma pesquisa sobre práticas culturais no Brasil apontam a variável idade como determinante, com o acesso à internet muito maior entre os jovens, sendo que na faixa até 34 anos as redes sociais são a principal fonte de informação acerca do consumo cultural. A leitura que mais cresce é aquela realizada na internet, que simultaneamente desloca e complementa a leitura tradicional – os que leem mais livros são os que leem mais em outras modalidades, como a internet (Leiva; Meirelles, 2018). No caso da América Latina, há que se pensar em uma passagem quase direta das culturas tradicionais para uma “segunda oralidade” relacionada aos meios audiovisuais e eletrônicos, bem como nas dificuldades associadas ao acesso e à circulação dessas produções culturais não-hegemônicas em função da lógica predominante do mercado, que se reproduz em larga medida nas redes.
Em relação aos booktubers, percebem-se elementos como a interatividade e a utilização da hipertextualidade que caracterizariam estes ambientes, configurando uma rede de mediações, interações comunicativas e circulação de saberes específicos. Entretanto, estes processos são bastante seletivos em termos de público, já que conquistam e se dirigem a segmentos específicos, sintonizados aos subcampos literários e temas tratados. Para os booktubers (e para a maioria dos youtubers), aplica-se bem a concepção de “microcelebridades”, personagens que se celebrizam num ambiente determinado, em uma escala que não pode ser considerada propriamente de massa. Desse modo, talvez sua importância sociológica, numa perspectiva bourdiseana, resida no fato de atravessarem os microcosmos e modelarem o espaço social em geral através de novas formas de construção de habitus[1] , por meio de princípios de visão e divisão sociais que ainda não foram plenamente formatados nos campos culturais (Almeida, 2022a).
As mudanças proporcionada pelas TIC em relação aos formatos de texto, aos suportes de leitura e aos hábitos de leitura – em especial das novas gerações – não foram plenamente considerados por muitas das instituições culturais responsáveis pelas mediações culturais relacionadas. Tal desdém pode gerar concepções equivocadas que não consideram as tecnologias nem os modos de leitura contemporâneos. Neste sentido, talvez seja possível considerar que, em boa medida, os booktubers estejam mais sintonizados às mudanças do habitus nas gerações mais jovens e em como isso afeta a mediação. O que não significa que esse conhecimento seja utilizado de forma crítica – pressões no sentido de capitalizar (ou como é usualmente chamado no meio, de “monetizar”) os conteúdos gerados leve, muito provavelmente, à produção de conteúdos conformistas sintonizados às expectativas de mercado.
5. Reflexões finais: paradoxos e desafios da mediação
No horizonte cultural contemporâneo é possível visualizar dois processos simultâneos: a ampliação das possibilidades de acesso e apropriação das pessoas aos conteúdos culturais e, de outro lado, o crescimento vertiginoso da concentração de propriedade dos meios de comunicação, constituindo enormes conglomerados que controlam as plataformas e aplicativos mais utilizados. Entretanto, ainda que de forma limitada, a disseminação destas tecnologias no cotidiano proporcionou a aparição de novos atores no campo discursivo das mídias, delineando possibilidades de uma dispersão do monopólio da produção e veiculação midiática de conteúdos. O acesso a uma série de informações relacionadas ao universo cultural vai se tornando cada vez mais condição para a possibilidade de fruição e de crítica das obras. O que presenciamos atualmente retoma, de certo modo, a concepção clássica da crítica como um julgamento de valor.
Entretanto, distintamente de épocas anteriores, são as tecnologias que vislumbraram a possibilidade de criação de espaços menos hierárquicos de circulação dessas informações, podendo fazer de cada consumidor cultural um eventual crítico ou mediador da informação. A quantidade de pequenos novos enunciadores em condição potencial de disponibilizar conteúdos em larga escala dilui em alguma medida o chamado “poder da mídia,” descentralizando, em parte, o oligopólio da enunciação midiática. Além da ampliação da oferta enunciativa, surgem ambientes de interação social que são apropriados por grupos diversos que estabelecem diferentes formas de socialização, conformadas pelos limites e possibilidades do meio. Entretanto, no movimento dialético que o caracteriza, o capitalismo busca resolver estas contradições absorvendo, cooptando, essas instâncias alternativas de mediação crítica.
Do ponto de vista da relação entre a mídia e a cultura, as tecnologias digitais ampliam o monitoramento intensificado do ambiente social estendido, tornando-se cada vez mais determinantes na formação do habitus. O reconhecimento obtido nas redes torna-se um importante mecanismo de regulação do desenvolvimento da autoestima e do comportamento, traduzindo-se em estilos de vida alter-sancionados. Não se deve subestimar a importância das classes sociais na configuração desse processo, porém trata-se de considerar que «distinções categoriais como classe ou idade podem não influenciar o habitus diretamente, mas ser mediadas pelo estilo de vida do grupo em questão» (Hjarvard, 2014, p. 235). As instituições tradicionais possuem uma influência decrescente na determinação do habitus, em oposição à crescente influência da mídia, que tornou-se parte tanto da reprodução quanto da renovação das distinções culturais e sociais da população.
Desse modo, as tecnologias de informação e comunicação contribuiram para reproduzir e renovar o habitus, fornecendo recursos para o desenvolvimento dos estilos de vida e de orientação moral. Hjarvard, entretanto, assinala uma preocupação com a natureza da função integradora dos meios de comunicação – se a “institucionalização” das biografias e dos estilos de vida é positiva ou negativa, se assinala novos modos de criatividade ou de conformidade. O fato é que, ao atuarem ativamente na certificação, disseminação e seleção da informação, os diversos tipos de mediadores da informação, como os booktubers, agem como mediadores desses processos sociais, constituindo-se como mais um “recurso” estrutural a ser considerado na análise do contexto cultural contemporâneo.
Na medida em que, para considerável parcela da intelectualidade, estes espaços tradicionalmente têm sido considerados ilegítimos ou irrelevantes, a reflexão acerca da mediação cultural que aí poderia ser exercida é bastante incipiente. As representações sociais embutidas nos processos culturais só existem plenamente quando alguém os interpreta, completando o circuito da comunicação, construindo para si uma realidade a partir dessa apropriação. Em se tratando de instituições, as ações de mediação se dão num processo de externalização e internalização de conteúdos simbólicos, portanto, entre ações de “in-formar”, no «âmbito da objetivação da conformação do acervo social do conhecimento – ou, em outras palavras, na própria constituição da cultura» (Araújo, 2016, p. 14). Tradicionalmente, as atividades de mediação têm sido vistas como facilitadoras desse processo, mas também, tradicionalmente, poucas vezes elas levam em consideração as competências dos usuários, especialmente os “leigos”. O aumento da complexidade social insuflado pela disseminação das tecnologias ultrapassa as fronteiras das instituições culturais, criando novos campos de saberes e de especializações nos territórios do cotidiano que devem ser considerados para a compreensão de processos culturais contemporâneos.
Repousam aí, talvez, as questões norteadoras para a elaboração de políticas e ações de mediação cultural que considerem ativamente o papel dos usuários. Entretanto, é necessário frisar que não se está abraçando aqui uma perspectiva de “populismo cultural” que aceita incondicionalmentemanifestações estéticas de cunho popular, de forma acrítica. O que pode determinar a maior ou menor autonomia dos atores locais nesse processo parece-nos ser o grau de acesso e apropriação das informações culturais relevantes que o perpassam, bem como as necessárias habilidades para lidar com elas. Aqui, as mediações culturais e informacionais podem desempenhar um papel estratégico. Talvez a maior tarefa e o mais complexo desafio colocado às formas de mediação crítica, hoje, seja a tarefa simultânea de se apropriar das tecnologias e de desvelar os vieses ideológicos subjacentes às suas mediações algorítmicas.