Informatio
29(2), 2024, e206
ISSN: 2301-1378
DOI: 10.35643/Info.29.2.6

Dossier temático «Mediación en la información»


 

Integridade da informação: nova problemática para a mediação da informação

Integridad de la información: nuevos temas para la mediación de la información

Information integrity: new issues for information mediation

Carlos Alberto Ávila Araújoa ORCID: 0000-0003-0993-1912

a Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Av. Antonio Carlos 6627, Belo Horizonte-MG, Email: mailto:carlosaraujoufmg@gmail.com

Resumo

Neste artigo, busca-se analisar o conceito de integridade da informação à luz da perspectiva da mediação da informação. O conceito de integridade da informação vem sendo utilizado pelo Grupo de Trabalho da Economia Digital do G20, o fórum que reúne os países que representam as maiores economias do mundo. Esse conceito está presente em diversos documentos oficiais produzidos por grupos de estudos ligados à Organização das Nações Unidas. Foram selecionados para análise três documentos: “Protecting Information Integrity: National and International Policy Options”, de 2018; “Information Integrity: Forging a Pathway to Truth, Resilience and Trust”, de 2022; e “Information Integrity on Digital Platforms”, de 2023. Foram identificados alguns elementos que representam uma nova problemática para a mediação da informação, tais como o foco no fluxo, no que acontece durante a circulação da informação; a inserção das questões informacionais num quadro contextual mais complexo, com diferentes dimensões; a associação da desinformação com outros fenômenos, como os discursos de ódio, a economia da atenção e o modelo de negócios das big techs. Conclui-se que a perspectiva da integridade da informação não localiza as discussões apenas no âmbito de uma problemática funcional, mas considera as demais dimensões presentes nos estudos sobre os fenômenos da desinformação.

Palavras-chave: INTEGRIDADE DA INFORMAÇÃO; DESINFORMAÇÃO; MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO; AUTORIDADES EPISTÊMICAS.

Resumen

En este artículo buscamos analizar el concepto de integridad de la información a la luz de la perspectiva de la mediación informativa. El concepto de integridad de la información ha sido utilizado por el Grupo de Trabajo de Economía Digital del G20, el foro que reúne a los países que representan las economías más grandes del mundo. Este concepto está presente en varios documentos oficiales elaborados por grupos de estudio vinculados a las Naciones Unidas. Se seleccionaron tres documentos para su análisis: “Protecting Information Integrity: National and International Policy Options”, “Integridad de la información: forjando un camino hacia la verdad, la resiliencia y la confianza” e “Integridad de la Información en Plataformas Digitales”. Se identificaron algunos elementos que representan un nuevo problema para la mediación de la información, como el enfoque en el flujo, en lo que sucede durante la circulación de la información; la inserción de preguntas informativas en un marco contextual más complejo, con diferentes dimensiones; la asociación de la desinformación con otros fenómenos, como el discurso de odio, la economía de la atención y el modelo de negocio de las big techs. Se concluye que la perspectiva de la integridad de la información no ubica las discusiones sólo en el ámbito de un problema funcional, sino que considera las otras dimensiones presentes en los estudios sobre los fenómenos de la desinformación.

Palabras clave: INTEGRIDAD DE LA INFORMACIÓN; DESINFORMACIÓN; MEDIACIÓN DE INFORMACIÓN; AUTORIDADES EPISTÉMICAS.

Abstract

In this article, we seek to analyze the concept of information integrity in light of the perspective of information mediation. The concept of information integrity has been used by the G20 Digital Economy Working Group, the forum that brings together countries that represent the largest economies in the world. This concept is present in several official documents produced by study groups linked to the United Nations. Three documents were selected for analysis: “Protecting Information Integrity: National and International Policy Options”, from 2018; “Information Integrity: Forging a Pathway to Truth, Resilience and Trust”, from 2022; and “Information Integrity on Digital Platforms”, from 2023. Some elements were identified that represent a new problem for the mediation of information, such as: the focus on flow, on what happens during the circulation of information; the insertion of informational questions into a more complex contextual framework, with different dimensions; the association of disinformation with other phenomena, such as hate speech, the attention economy and the big tech business model. It is concluded that the perspective of information integrity does not locate discussions only within the scope of a functional problem, but considers the other dimensions present in studies on the phenomena of disinformation.

Keywords: INFORMATION INTEGRITY; DISINFORMATION; INFORMATION MEDIATION; EPISTEMIC AUTHORITIES.

Received: Accepted:
CC-BY

Araújo, C. A. Á. (2024). Integridade da informação: nova problemática para a mediação da informação. Informatio, 29(2), e206. https://doi.org/10.35643/Info.29.2.6

03/06/2024 01/11/2024

1. Introdução

Nos últimos anos, novas condições de produção, circulação e uso da informação, no cenário mundial, têm sido marcadas pelos fenômenos da desinformação, da pós-verdade e da infodemia. Esses termos, que serão definidos adiante, buscam nomear tais condições em que muita informação falsa tem sido produzida, compartilhada e utilizada pelas pessoas na hora de tomarem decisões e conduzirem ações em campos distintos como a saúde, a economia, a política e muitos outros. Agrava essa questão o fato de que não se trata apenas da divulgação de informações falsas. As dinâmicas da desinformação apontam para processos muito mais complexos: muitas vezes, são informações apenas parcialmente falsas; outras vezes, as informações são corretas, mas são atribuídas a outra fonte ou a outro canal; em certos casos, divulga-se informação antiga como se fosse atual; algumas vezes, são sutilmente distorcidas; e há casos em que há um recorte ou seleção de um conteúdo que, tomado isoladamente, altera o seu significado.

Muitos estudos científicos vêm sendo conduzidos nos últimos anos com o objetivo de compreender tais fenômenos, entender suas origens, suas características e seus efeitos nocivos sobre a democracia, a saúde pública, os direitos humanos e outras dimensões da vida coletiva. Junto com eles, diversas iniciativas têm sido propostas e executadas, em diferentes países e no âmbito de diferentes instituições. Entre essas iniciativas, destacam-se tentativas de elaboração de leis para regulamentação das plataformas digitais, mecanismos para responsabilização por veiculação de informação falsa, criação de agências de checagem, programas de alfabetização midiática e competência em informação. Desde 2023, a ideia de “integridade da informação” vem sendo proposta pelo G20 (o grupo das vinte maiores economias do mundo) e pela ONU (a Organização das Nações Unidas), como forma de se ter uma agenda positiva de ações no enfrentamento à desinformação.

O conceito de integridade da informação ainda não está desenvolvido na literatura científica, de forma que é em documentos oficiais de instituições internacionais que se pode ter acesso a elementos relativos à sua construção conceitual. Por esse motivo, neste artigo, serão analisados três documentos oficiais, produzidos justamente no âmbito do G20 e da ONU, pois são os três primeiros documentos nos quais há um desenvolvimento do conceito, conforme análise de Santos (2024).

Como a integridade da informação representa uma maneira de atuação nos processos de produção, circulação e uso da informação, optou-se neste texto por analisá-lo à luz da perspectiva da mediação da informação, que é um dos campos de atuação e intervenção no âmbito da ciência da informação. O argumento apresentado neste trabalho é que, num cenário de desinformação, as ações de mediação de informação poderiam se dar no sentido de garantia da integridade da informação. Para a defesa desse argumento, é feita uma análise dos três documentos oficiais mencionados acima, extraindo-se deles os conceitos-chave que compõem a noção de integridade da informação. A seguir, eles são analisados à luz do conceito de mediação da informação e dos elementos que compõem os conceitos de desinformação, pós-verdade e infodemia. Como produto dessa análise, percebe-se que a ideia de integridade da informação possibilita uma efetiva ação de mediação da informação voltada para o cenário da desinformação e, ao mesmo tempo, traz condições para se atuar nas diferentes dimensões do fenômeno da desinformação.

2. Apresentação e sistematização dos documentos de referência

O G20 ou Grupo dos 20 é um fórum composto pelos países que possuem as maiores economias do mundo. Seu objetivo é discutir e coordenar políticas económicas que têm impacto em todo o planeta. O grupo foi criado em 1999 e atualmente conta com 19 países (África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia), além de dois organismos regionais - União Europeia e União Africana, esta, admitida recentemente. Juntos, eles representam cerca de 85% do PIB mundial e 64% da população mundial. A presidência do fórum é feita de maneira rotativa por um membro do grupo pelo período de um ano. Em 1º de dezembro de 2023, o Brasil assumiu a presidência do G20, e no final de 2024 será a vez da África do Sul.

O Grupo dos 20 possui uma série de grupos de trabalho, voltados para diferentes aspectos da realidade económica mundial. Um deles é o Grupo de Trabalho da Economia Digital (G20 DEWG, na sigla em inglês). Criado em 2021, este grupo tem por objetivo apresentar estudos para ajudar na formulação de políticas públicas sobre o potencial digital da economia.  Já foram propostos temas como a conectividade significativa e universal, a inteligência artificial, o governo digital e, mais recentemente, a integridade da informação. No dia 20 de setembro de 2023, foi lançada a Declaração Global sobre Integridade da Informação Online, em Nova York, nos Estados Unidos. Nos dias 30 de abril e 01 de maio de 2024, ocorreu um evento paralelo do G20 com o tema “Integridade da informação e confiança no ambiente digital”. O tema da integridade da informação também estará presente na 19ª Reunião de Cúpula do G20 que acontecerá na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, nos dias 18 e 19 de novembro de 2024.

É possível perceber que a temática da “integridade da informação” acabou ocupando destaque nas discussões e negociações internacionais relativas às tecnologias digitais, à desinformação e à consolidação da democracia. De acordo com Santos (2024), a expressão “integridade da informação” ganhou relevância no debate internacional a partir da publicação do documento “Our Common Agenda: Policy Brief 8”, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em junho de 2023. A mesma autora aponta ainda que, em fevereiro de 2022, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (Pnud) publicou o documento “Information Integrity: Forging a Pathway to Truth, Resilience and Trust”. Neste documento há duas referências para o conceito de integridade da informação: um produzido por uma empresa chamada Yonder (que existiu de 2017 a 2022) e outro, o relatório “Protecting Information Integrity: National and International Policy Options”, produzido pelo World Leadership Alliance-Club de Madrid, de novembro de 2018. Ainda conforme Santos (2024), o termo tem sido amplamente utilizado por organismos internacionais em instrumentos de cooperação entre diferentes países, mas, como apontado na introdução deste texto, não está presente na literatura científica até o momento.

Ainda que tenha havido a publicação de outros documentos sobre integridade da informação, para este trabalho serão considerados os três documentos mencionados por Santos (2024), pois são eles que têm relação direta com a recente utilização do termo no âmbito das reuniões e ações do G20 e da ONU, ou seja, estão diretamente vinculados a políticas econômicas de impacto global, relacionados aos desafios que vêm se colocando para todo o planeta. Cada um dos documentos será apresentado a seguir, em uma síntese que busca selecionar os elementos mais relevantes a serem analisados na seção seguinte deste texto.

2.1. O documento “Proteção da integridade da informação: opções de políticas nacionais e internacionais”

Este documento (The World Leadership Alliance, 2018) foi produzido pela The World Leadership Alliance - Club de Madrid (WLA-CdM), a partir das discussões da Chatham House realizadas na Mesa Redonda sobre Governança Global para Integridade da Informação organizada em conjunto com o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República da Letônia na cidade de Riga, no dia 27 de setembro de 2018. A WLA-CdM é uma assembleia de líderes políticos composta por mais de 100 ex-presidentes e primeiros-ministros de mais de 60 países, que discutem temas ligados à democracia, governança e cidadania com objetivo de produzir recomendações e consultorias em escala mundial.

O ponto de partida do documento é a ideia de que o acesso à informação é o principal pilar da democracia, ou seja, de que o exercício dos direitos políticos (votar, expressar as opiniões) depende do acesso a informações confiáveis, equilibradas e completas sobre as questões políticas e governamentais. Nesse sentido, as tecnologias digitais e as redes sociais poderiam ser vistas como impulsionadores da democracia. Todo o documento está inserido na problemática das relações entre tecnologias digitais e processos políticos.

O documento começa com a constatação de que as tecnologias digitais permitiram avanços, como maior possibilidade de participação e envolvimento dos cidadãos, acesso direto a líderes políticos, transparência, possibilidade de cobranças e novos serviços públicos. Mas elas também trouxeram novos desafios, tais como a possibilidade de anonimato, a possibilidade de publicação e retransmissão a custo zero, as câmaras de eco (causadas pela priorização de conteúdo relacionado ao histórico de navegação dos usuários) e o uso de dados pessoais para direcionar publicidade. Todos eles acabaram por conduzir a um intenso fluxo de informações falsas, discursos de ódio e ideias extremistas.

É dentro desse quadro que o documento dedica um tópico inteiro à definição de integridade da informação. Antes de apresentar a definição, contudo, há uma crítica aos termos normalmente utilizados para se referir à ampla circulação de informações falsas, tais como fake news, disinformation, misinformation e information manipulation. Esses termos vêm sendo usados por especialistas e articulam características como: a) ações intencionais ou não intencionais; b) no caso das intencionais, com objetivo de causar danos ou sem esse objetivo; c) conteúdos completamente falsos ou manipulados. O documento menciona ainda outros fenômenos como os algoritmos de conteúdos, as câmaras de eco e a publicidade microdirecionada. 

Buscando utilizar um termo que agrupe essa variedade de fenômenos, o documento propõe então a expressão “integridade da informação”. O uso dessa expressão no documento vem de dois relatórios, um intitulado “Project on Democracy and the Internet” da Stanford University e outro intitulado “Integrity Initiative” do Institute for Statecraft. A partir desse referencial, a integridade da informação é definida como a confiabilidade, o equilíbrio e a completude das informações às quais os cidadãos têm acesso, relacionadas aos temas políticos (ações governamentais, ações dos atores políticos relevantes, entre outros). Os problemas contemporâneos relacionados com as tecnologias digitais são vistos, assim, como ameaças à integridade da informação. A justificativa do uso do termo se coloca na medida em que ele representa uma ampliação do escopo, da intencionalidade da produção de conteúdos para o que acontece com a informação durante a sua circulação, isto é, as práticas empresariais e mercadológicas, a velocidade e o alcance dos conteúdos, o direcionamento de mensagens e a lógica de recomendações dos algoritmos, entre outros fenômenos que atuam promovendo a deterioração da integridade da informação. Essa é a ideia síntese da proposta deste novo termo. Ao final da definição, no documento ainda está a principal consequência das ameaças à integridade da informação: embora sempre tenha havido discordâncias entre grupos com ideologias diferentes, estaria acontecendo agora, pela primeira vez na história, um desacordo generalizado a respeito de fatos básicos da realidade.

O documento possui ainda mais dois capítulos. O primeiro deles refere-se a abordagens políticas para a proteção da informação. São elencadas cinco recomendações: a) criação de uma proposição de direitos digitais (para além dos direitos políticos e cívicos já existentes e que podem ser aplicados no ambiente digital); b) criação de legislação sobre o ambiente digital (aproveitando leis já existentes sobre liberdade de expressão, contra difamação, entre outras, mas também adaptando leis editoriais para incluir as redes sociais); c) incentivo à ação voluntária; d) apoio à publicação de informação confiável (para além do monitoramento e denúncia de informações falsas); e) educação dos cidadãos, para serem responsáveis e criteriosos no uso da informação.

O último capítulo do documento é dedicado às instâncias que devem ser responsáveis pela elaboração de políticas de proteção da integridade da informação, detalhando aquilo que deve ser de responsabilidade do país, aquilo que deve ser de cooperação internacional para a resiliência social (relacionada com fatores socioeconômicos) e aquilo que deve ser de cooperação internacional propriamente para a proteção da integridade da informação.

2.2. O documento “Integridade da informação: construindo o caminho para a verdade, a resiliência e a confiança”

Este documento (United Nations, 2022) foi publicado em fevereiro de 2022 pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP, sigla para United Nations Development Programme). Foi produzido por Niamh Hanafin, sob a supervisão de Simon Finley, e teve, para sua redação, o apoio de equipes de outros temas do UNDP, tais como os de Gênero, Juventude, Eleições, Diretos Humanos e Estado de Direito e Prevenção de Conflitos. Ele também foi embasado nas respostas dadas em uma consulta pública mundial feita pela Unesco sobre o impacto da desinformação, o “Forging a Path to a Better Information Ecosystem - Efective Governance, Media, Internet and Peacebuilding Responses to Disinformation”. O documento tem um duplo objetivo: avançar no quadro conceitual e fornecer orientação prática para a construção de programas.

O documento começa com a ideia de que o acesso à informação confiável, que passe por verificações ou controles, é fundamental para que a humanidade possa lidar com diferentes desafios. Tais desafios são listados a seguir, e representam um escopo muito maior do que apenas a questão da democracia, como no documento anterior. Entre os desafios mencionados estão os conflitos violentos, os retrocessos democráticos, as emergências climáticas, a pandemia de Covid-19, a busca por uma governança eficaz, o desenvolvimento sustentável, a transparência, responsabilidade e confiança nas instituições, o combate aos preconceitos e a busca por sociedades inclusivas, pacíficas e justas. Nesse quadro, argumenta-se que a internet mudou as condições de produção, distribuição e consumo de informação, trazendo por um lado oportunidades (maior acesso, maior liberdade de expressão, maior possibilidade de participação pública) e, por outro, desafios (favorecimento de conteúdo sensacionalista, desinformação, uso de robôs).

Na linha dos desafios colocados, o documento os organiza, num tópico posterior, em três grandes áreas de preocupação. A primeira é a governança e a democracia, com a erosão da confiança pública nas instituições governamentais e meios de comunicação de massa (com menor confiança, a vulnerabilidade à poluição da informação é maior) e a degradação do debate público (relativo à qualidade do debate, aos temas debatidos e às opiniões polarizadas). A segunda é a coesão social, na medida em que a desinformação impulsiona a polarização política e social e, com isso, gera estigmatização de grupos marginalizados. A terceira são os direitos fundamentais, em relação aos quais a desinformação limita o acesso à informação precisa e confiável e, com isso, reduz-se a capacidade das pessoas em distinguir ficção dos fatos. Tal quadro é agravado por alguns fatos, como a falta de um enquadramento internacional sobre tais questões, a dificuldade a se ter acesso a informações importantes para a pesquisa (já que as chamadas big techs limitam o acesso a dados sobre sua lógica de funcionamento), a pluralidade de atores envolvidos em possíveis soluções, entre outros.

O documento possui ainda um marco conceitual. Há a constatação de que não existe consenso sobre o significado dos termos usados para descrever o momento atual, com uma crítica ao uso de termos como misinformation (informação errônea) e disinformation (desinformação), além de fake news. O documento apresenta três conceitos centrais e dois conceitos correlatos.

O primeiro conceito é o de ecossistema de informação, que se refere a um todo complexo que engloba a infraestrutura de informação, ferramentas, meios de comunicação, produtores, consumidores, curadores e distribuidores. É por meio dele que a informação se move, vira fluxo. Esse fluxo é diretamente moldado pelos ambientes tecnológicos, culturais, sociais e políticos.

O segundo conceito é integridade da informação, que, como é ressaltado, vem do ambiente corporativo e se refere à proteção da informação. Nesse contexto, o conceito se refere a três propriedades que a informação deve ter (confiabilidade, equilíbrio e completude) para garantir um ecossistema de informação saudável, de forma a se proporcionar que os cidadãos tenham uma visão adequada dos diferentes ambientes (político, sanitário, ecológico, etc.) para a tomada de decisões.

O terceiro conceito é poluição da informação, que se refere a conteúdos falsos, enganosos ou manipulados, intencionalmente ou não, e que podem provocar danos. Neste ponto, o documento faz referência à categorização de Wardle e Derakhshan (2017), que preveem as seguintes categorias: desinformação (disinformation), informação falsa ou errônea (mis-information) e informação maliciosa (mal-information).

Os dois conceitos correlatos são discurso do ódio (cuja definição é aquela oficialmente adotada pela ONU, ou seja, discursos violentos ou pejorativos contra pessoa ou grupo em função daquilo que eles são) e a propaganda (técnicas persuasivas que podem ser usadas para a poluição da informação).

Em outro momento do documento, há a construção de um amplo quadro analítico. Nele, são identificados os quatro ambientes nos quais ocorrem os fenômenos da poluição da informação: o político, o dos meios de comunicação e seu entorno, o social e o legislativo. Para cada um deles, são identificados: a) os elementos facilitadores; b) os promotores e direcionadores da poluição da informação (como a baixa confiança nas instituições, o populismo, a falta de pluralidade na mídia, mídia hiperpartidária, o discurso público polarizado, a legislação ineficaz, etc); c) as vulnerabilidades; e d) o impacto da poluição da informação (a degradação do debate público, a participação reduzida dos cidadãos, a divulgação de notícias inúteis, a estigmatização de grupos vulneráveis, o aumento da violência, legislação que restringe o espaço cívico e as vozes dissidentes, crescimento da indústria da desinformação, etc.).

O restante do documento é dedicado à apresentação de um amplo programa de ações para combater a poluição da informação, incluindo respostas eficazes, produtos a serem gerados e com exemplos de ações realizadas em diferentes países.

2.3. O documento “Integridade da informação nas plataformas digitais”

Este documento (United Nations, 2023) foi publicado em junho de 2023 e faz parte da série “Our common agenda” (A nossa Agenda Comum), uma série de publicações que tem por objetivo dinamizar as discussões em torno da Agenda 2030 e facilitar a consecução dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”. Esse documento representa o volume 8 da série Our Common Agenda, sendo o “Policy Brief 8”. Ele foi preparado pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, como parte da série de onze Informes de Política para a Nossa Agenda Comum.

O objetivo do documento é ajudar na produção de um consenso sobre como as ameaças à integridade da informação afetam os diferentes povos do mundo nos níveis global, nacional e local, bem como apresentar algumas bases para um possível código de conduta comum para países, plataformas digitais e outros atores relevantes. Como nos demais documentos, constata-se que as plataformas digitais trouxeram benefícios (maior possibilidade de participação, de divulgação, de engajamento), mas também possuem um lado sombrio (com a disseminação de mentiras e discursos de ódio).

Neste documento há um tópico voltado para a definição de integridade da informação. Ela é definida em termos de precisão, consistência e confiabilidade. A integridade da informação é ameaçada pela desinformação, pela informação falsa e pelo discurso de ódio. No documento há uma distinção entre desinformação (informação imprecisa produzida com intenção de enganar e causar dano) e informação falsa (disseminação não intencional de informações imprecisas), além da definição de discurso de ódio adotada pela ONU.

Há também um tópico específico sobre integridade da informação e plataformas digitais, que incluem as redes sociais, os motores de busca e os aplicativos de mensagens. Ainda que os meios de comunicação de massa sejam, também, fontes de erros e desinformação, o documento destaca que no caso das plataformas digitais há uma novidade que é velocidade, o volume e a viralidade de propagação da desinformação. Mais do que isso, as plataformas digitais coletam dados sobre os usuários e suas interações. E ainda há o fato de que a desinformação também se mostrou um grande negócio dentro da chamada economia da atenção em que os algoritmos são projetados para priorizar conteúdos que mantenham a atenção e o engajamento dos sujeitos.

No documento há ainda uma discussão sobre o quadro jurídico internacional relevante e sobre os principais danos causados pela informação falsa, pela desinformação e pelo discurso de ódio online em áreas como a saúde, a ação climática, a democracia e as eleições, a igualdade de gênero e a segurança. Exemplos desses danos são a promoção de conteúdos antivacina e negacionistas, o impedimento da formação do consenso científico, a diminuição da participação das pessoas nos processos eleitorais, a exclusão de grupos vulneráveis, entre outros. Conclui-se que as ameaças à integridade da informação podem ter um impacto negativo na implementação de todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. E ainda há o destaque para o fato de que a desinformação e o ódio não existem “no vácuo”, mas, antes, se espalham quando as pessoas se sentem excluídas ou ignoradas.

Em outra parte do documento, são apresentadas questões que podem fortalecer a integridade da informação: respostas regulatórias (com as plataformas sendo responsabilizadas legalmente por conteúdos difamatórios e de assédio; e usuários poderem sinalizar conteúdos ilegais e contestarem decisões de moderação); desmonetização da desinformação; identificação clara de conteúdo publicitário; capacitação dos usuários para reconhecimento e sinalização de desinformação; melhoria da transparência das plataformas, entre outras. O documento termina com um direcionamento para um código de conduta das Nações Unidas com os seguintes princípios: compromisso com a integridade da informação, respeito aos direitos humanos, apoio à mídia independente, aumento da transparência, empoderamento dos usuários, fortalecimento da pesquisa e do acesso a dados, respostas ampliadas, desestímulos à desinformação mais fortes e promoção de maior confiança e segurança.

3. Mediação da informação e as autoridades epistêmicas

A noção de “mediação da informação” surgiu como uma busca de compreensão mais complexa das atividades profissionais e institucionais no campo da informação. A ideia era superar uma visão simplista de que tais profissionais e instituições seriam apenas uma “ponte”, algo a ligar as pessoas e os recursos informacionais. Nessa linha, Almeida Júnior (2009), por exemplo, defende um tipo de compreensão da prática profissional como mediação para superar uma ideia de neutralidade, buscando vê-la como um conjunto de interferências, conscientes ou inconscientes, na seleção de itens, na escolha de critérios de organização, na hierarquização da disponibilização de itens informacionais. Numa abordagem próxima, Almeida e Crippa (2009) partiram de uma concepção de tecnologia da informação como mediação para conceituar a mediação como espaço de interação entre diferentes públicos em torno de linguagens, produtos informacionais e tecnologias, a partir de uma apropriação de teorias das mediações como as de Martin Barbero (1997) e Davallon (2003). Em trabalhos posteriores (Crippa, Carvalho, 2012; Almeida, 2014) os autores avançaram na compreensão da mediação da informação como espaço de interseção entre processos culturais, informacionais e tecnológicos, com destaque para a intencionalidade e o protagonismo dos sujeitos e da dimensão relacional dos processos informacionais nos quais eles se envolvem.

Nos anos seguintes, vários estudos aprofundaram a compreensão sobre o fenômeno da mediação da informação. Gomes (2014), por exemplo, identificou e caracterizou as dimensões dialógica, estética, formativa e ética da mediação da informação. Perrotti e Pieruccini (2014) evidenciaram o componente simbólico da mediação da informação no tensionamento entre as instâncias de produção e de recepção de produtos informacionais.  Martins (2019) evidenciou a mediação da informação como categoria lógica, ontológica, epistemológica e metodológica. E Rocha (2020) sistematizou as dimensões vertical, institucional e horizontal da mediação da informação.  Uma ampla sistematização do conhecimento produzido no campo da mediação da informação foi realizada por Silva, Nunes e Cavalcante (2018) e por Santos Neto (2019). Foge ao escopo deste trabalho identificar as diferenças entre as várias abordagens e perspectivas desenvolvidas no âmbito da reflexão sobre a mediação da informação. Contudo, em todas elas, é evidente a crítica a uma concepção essencialmente transmissiva dos processos informacionais, isto é, à ideia de que a informação refere-se apenas a fluxos e transferência de registros do conhecimento. Nas suas variadas abordagens, os estudos em mediação da informação destaca o caráter ativo dos sujeitos envolvidos nos processos de produção, de circulação, de uso e de apropriação da informação; as dinâmicas relacionais nas quais eles se envolvem; e o enraizamento de tais processos nos contextos em que eles ocorrem.

Recentemente, novas questões vêm sendo colocadas para o campo da mediação da informação, relacionadas com as novas condições de produção, circulação e uso de informação, nas quais a informação falsa assume grande importância (Araújo, 2023). Vários autores caracterizaram essas novas condições como um cenário de pós-verdade (McIntyre, 2018; Fuller, 2018; Santaella, 2019). Na definição do dicionário Oxford, no cenário da pós-verdade, os apelos à emoção e às crenças pessoais são mais importantes na formação da opinião do que os fatos da realidade (D’Ancona, 2018). A pós-verdade é um fenômeno que se produz na confluência de três condições. A primeira delas é a ampla disseminação de informações falsas (complemente falsas, e não apenas distorções como na era dos meios de comunicação de massa) com suporte tecnológico que permite alcances inimagináveis na era da fofoca e dos rumores. A segunda é a possibilidade de checagem nos dias atuais, em que muitas pessoas podem, em poucos segundos e com aparelhos de uso cotidiano como o smartphone ou o notebook, checar a veracidade das informações recebidas por elas em qualquer meio. A terceira é o fato de as pessoas não fazerem isso, isto é, não checarem, não verificarem se uma informação é verdadeira ou falsa, antes de a repassarem e dela se apropriarem. É esse desinteresse, esse desdém pela verdade, que marca aquilo que vem sendo identificado como uma “cultura da pós-verdade” (Wilber, 2018) ou um “regime de pós-verdade” (Broncano, 2019). A expressão cultura designa justamente um conjunto de valores, de naturalizações, de estímulos a um determinado comportamento – no caso, o desprezo pela verdade, a valorização daquilo que confirma ideias preconcebidas, a seleção apenas daquilo que é confortável. A pós-verdade caracteriza um imaginário contemporâneo no qual a desconsideração da verdade é naturalizada, estimulada, exaltada, como um valor ou uma virtude (D’Ancona, 2018; Murolo, 2019).

O momento contemporâneo vem sendo definido também pelo termo infodemia (Naeem e Bhatti, 2020). A associação dos termos informação e pandemia caracteriza, pois, uma caracterização patológica da dimensão informacional: a gigantesca abrangência e velocidade de disseminação de informações falsas tem produzido um quadro em que as informações falsas estão mais presentes na vida das pessoas do que as verdadeiras e de qualidade, e acabam tendo muito mais influência na tomada de decisões e na definição das linhas de ação. Conforme Zarocostas (2020), esse excesso de informações circulantes (algumas verdadeiras, outras falsas) faz com que seja difícil para as pessoas encontrarem as informações verdadeiras na hora de tomar as decisões e agir. O autor aponta que esse fenômeno pode agravar uma situação de pandemia (como a vivida em 2020) também por gerar ansiedade, sobrecarga e exaustão nas pessoas, além de tornar mais complexos os processos de controle de qualidade do que é publicado e de atestar a idoneidade das fontes de informação. Assim se constitui uma natureza “pandêmica” dos fenômenos informacionais, tomados desde a perspectiva de seus efeitos adversos ou disfunções.

A ampla produção, circulação e consumo de informações total ou parcialmente falsas, caracterizada por termos como pós-verdade ou infodemia, colocou para o campo da mediação da informação, um novo desafio: a necessidade de garantir que as informações acessadas pelas pessoas nos serviços e ambientes de informação sejam verdadeiras. O critério da veracidade precisa ser priorizado em relação a outros critérios como, por exemplo, a relevância, a atualidade ou a diversidade (Furner, 2018). Por esse motivo, o campo da mediação vem se aproximando da noção de autoridades cognitivas ou autoridades epistêmicas, isto é, aquelas instituições cuja função social é produzir e disseminar conhecimentos verdadeiros, verificados, de acordo com as evidências e com o consenso científico (Araújo, 2023). Entre tais instituições se destacam os institutos de pesquisa, as universidades, as escolas, as bibliotecas, os arquivos, os museus e os veículos jornalísticos. A ideia de autoridade cognitiva vai além, portanto, da noção de fonte de informação. Ela inclui também um lastro institucional, um compromisso com a correspondência dos discursos e conteúdos com os fatos da realidade, utilizando determinados instrumentos e métodos para a produção, a conferência, a validação e a certificação dos conhecimentos produzidos ou postos em circulação (Wilson, 1983; Rieh, 2010; Froehlich, 2019, Miller, 2020). A mediação da informação, num contexto infodêmico ou de pós-verdade, precisa priorizar a veracidade e confiabilidade dos conteúdos, buscando combater a fraude, o engano e a falsidade. É nesse sentido que, num primeiro momento, a mediação da informação passou a priorizar uma dimensão veritística de sua atuação (Furner, 2018). Como consequência, houve uma aproximação ao conceito de autoridades cognitivas. Agora, há uma nova questão, que é a possível aproximação entre a mediação da informação e a noção de integridade da informação.

4. Mediação da informação e integridade da informação

Os três documentos apresentados neste artigo trazem uma série de elementos relacionados à integridade da informação que representam novidades e questões a serem pensadas e problematizadas no âmbito da mediação da informação.

No primeiro documento analisado (The World Leadership Alliance, 2018), é possível ver o esforço em passar de uma lógica de compreensão baseada apenas na transmissão de informação entre sujeitos, na intencionalidade e nos objetivos do produtor, para uma centrada na dinâmica do fluxo da informação em diferentes contextos, ambientes e aparatos – fluxo esse sobre o qual atuam ainda diferentes variáveis, fenômenos e atores. Essa ênfase no movimento e na circulação da informação, e na atuação das dimensões política, econômica, tecnológica, regulatória, social, entre outras, sobre essa circulação, caracteriza uma outra perspectiva informacional contemporânea – a do estudo dos regimes de informação. Os regimes de informação consistem numa noção recente do campo dos estudos informacionais, assim como a perspectiva da mediação da informação. Estudar os fenômenos pela perspectiva dos regimes de informação implica que não se deve estudar a informação nela mesma (seu conteúdo, seus atributos, seus elementos internos, a intencionalidade de quem a produziu), mas, sim, compreendê-la como produto da interação entre os vários fatores que a tornam possível e condicionam a sua existência (Braman, 2004; Frohmann, 2008). Estudar um regime de informação implica, ainda, compreender o modo informacional dominante de uma determinada sociedade ou contexto, isto é, identificar quem são os atores, as organizações, as regras, as autoridades, os recursos e as hierarquias que conformam um determinado regime – ou seja, determinadas condições de existência de discursos e enunciações. Nesse sentido, merece destaque o fato de o documento terminar com algumas recomendações de abordagens para a defesa da integridade da informação (regras, uso de recursos) e, depois, com a identificação dos atores e instâncias que devem agir na elaboração de políticas de proteção da integridade da informação. O conceito de integridade da informação, nessa perspectiva, não seria algo relacionado apenas às mensagens, aos conteúdos informacionais, mas sim algo relacionado ao seu fluxo, às suas condições de circulação - por exemplo, quando informações verdadeiras circulam com um recorte descontextualizado, provocando desinformação.

Essa perspectiva de inserir os fenômenos informacionais num quadro de maior amplitude de dimensões está presente no segundo documento (United Nations, 2022), na medida em que o fenômeno da poluição da informação é visto como ameaça para questões tão distintas como o desenvolvimento sustentável, as questões climáticas, o retrocesso democrático, as violações de direitos humanos, a estigmatização de grupos vulneráveis. Adquire centralidade também nesse documento a questão das autoridades epistêmicas (embora essa expressão não seja usada), na medida em que se problematiza a questão da confiança nas instituições e nos produtores de informação e na importância da coesão social. Essa coesão é entendida como um acordo em relação aos fatos básicos do mundo, aqueles sobre os quais é possível proceder à verificação, à busca de evidências, e que serão as bases sobre as quais podem ser construídos os debates públicos. É sintomático que seja neste documento que exista uma preocupação maior com a estabilização de um marco conceitual. Nele, a ideia de poluição da informação alarga a compreensão de que não são apenas as informações falsas que produzem desinformação. Há também uma preocupação em mapear o que seria o regime de informação (embora também essa expressão não seja utilizada), com a identificação dos quatro componentes ambientais (o político, o dos meios de comunicação, o social e o legislativo) com os atores, recursos, hierarquias e regras que atuam em cada um deles.

O terceiro documento (United Nations, 2023) avança na compreensão central do papel das plataformas digitais na poluição da informação, evidenciando que elas não são apenas “depósitos” de conteúdos ou “veículos neutros” de conteúdos informativos. As big techs são atores que têm interesses e que, muitas vezes, fazem da desinformação um modelo de negócio, lucrando com a circulação de informações falsas e discursos de ódio, que geram atenção e engajamento. Elas podem ser entendidas como mediadoras, na medida em que hierarquizam e priorizam conteúdos, oferecem formas de produção e veiculação, além de coletar dados para direcionamentos seletivos.

Uma última questão diz respeito ao quadro intelectual geral ao qual a perspectiva da integridade da informação pode se inserir. Santos (2024), ao analisar os três documentos apresentados neste artigo, argumenta que a proposta do conceito de integridade da informação teria como um dos objetivos deslocar o debate de um viés negativo (o combate a fenômenos de desinformação e discursos de ódio) para um viés positivo (de proposição de ações, de busca por um ecossistema de informação saudável). Essa é uma leitura que sugere o deslocamento de eixo de uma perspectiva crítica para uma perspectiva funcionalista.

Em Araújo (2024) há uma sistematização da produção científica sobre desinformação utilizando-se um quadro de referência construído a partir do trabalho de Burrell e Morgan (1979) sobre as ciências sociais. Burrell e Morgan (1979) organizam as ciências sociais a partir de duas dicotomias: os estudos que analisam a realidade social como tendo existência nela mesma, em suas regularidades, em oposição aos que a veem como construída pelos sujeitos; e os estudos que veem a vida social como uma integração de partes exercendo determinadas funções, em oposição aos que a veem como produto do conflito entre classes e grupos com interesses antagônicos. Destas duas oposições eles derivam um modelo que identifica quatro modos de se estudar a vida social: o funcionalista, o interpretativo, o estruturalista e o humanista. A partir desse quadro, Araújo (2024) identificou diferentes questões a respeito da desinformação estudadas em trabalhos científicos de várias áreas, e os agrupou conforme as quatro perspectivas de Burrell e Morgan.

Dessa forma, puderam ser identificados estudos que entendem a desinformação como disfunções das sociedades contemporâneas, dentro de um quadro de desordem informacional ou de infodemia. Assim, estudos sobre os tipos de desinformação, sobre a perda da confiança nas autoridades cognitivas, sobre a necessidade de fortalecimento dessas autoridades e letramento sobre seu modo de funcionamento, bem como estratégias de responsabilização e criminalização em relação a quem produz e difunde desinformação se enquadram em uma perspectiva funcionalista.

Já estudos que buscam compreender por que as pessoas acreditam nas informações falsas, que critérios utilizam para escolher acessar e se apropriar de determinados canais, fontes e conteúdos, e como decidem valorizar e compartilhar certas informações se enquadram em uma perspectiva compreensiva. Estão nessa abordagem pesquisas sobre os vieses cognitivos dos usuários, sobre valores que incidem sobre os usuários (rejeição aos especialistas, desdém pela verdade), sobre os processos de fixação das crenças e sobre a ilusão de que determinados processos ocorrem sem mediação da informação.

Já em uma perspectiva estrutural ou marxista, se agrupam estudos que buscam ver a dimensão ideológica da desinformação, isto é, os usos que são feitos dos conteúdos (falsos ou manipulados) para sustentar determinados interesses e relações de poder. Nessa linha estão aquelas pesquisas sobre o modelo de negócio das big techs (a economia política das plataformas digitais), o capitalismo de vigilância, a promoção comercial do negacionismo científico, a promoção do ódio para mobilização política de grupos e o alinhamento de grupos políticos extremistas e populistas às práticas de desinformação.

Por fim, na perspectiva humanista, estão os estudos voltados à compreensão de como os sujeitos se posicionam em relação às dinâmicas da desinformação e seu caráter ideológico, as competências maiores ou menores dos sujeitos para identificar os atores, seus interesses e os mecanismos das plataformas digitais, em condições que variam da alienação à emancipação. Uma rápida síntese dessa sistematização é apresentada a seguir, no quadro 1.

Quadro 1: As quatro dimensões da desinformação

Funcionalista/sistêmica Interpretativa/construcionista

Infodemia/desordem informacional

Fortalecimento das instituições

Tipologia da desinformação

Responsabilização

Competência em informação

Vieses cognitivos

Cultura da pós-verdade

Culto do amadorismo

Fixação da crença

Desintermediação da informação

Estrutural/marxista Humanista/emancipatória

Modelo de negócios

Capitalismo de vigilância

Negacionismo

Populismo

Economia do ódio

Condições de alienação

Emancipatório

Competência crítica em informação

Justiça epistêmica

Participação na democracia

Fonte: adaptado de Araújo (2024)

A noção de mediação da informação tem potencial analítico para transitar por essas quatro dimensões, e isso tem sido feito inclusive nos vários estudos que têm buscado identificar as dimensões ou níveis da mediação da informação. A mediação da informação, num contexto pandêmico, implica tanto a mediação voltada para o fortalecimento das autoridades cognitivas (funcionalismo); quanto para a clareza sobre a dimensão ideológica, numa denúncia dos interesses e vinculações dos diferentes autores e canais de informação (estruturalista); para a compreensão de quem são os usuários, seus critérios de qualidade e julgamento (interpretativa); e para a capacitação crítica dos usuários para lidar com os conteúdos e sua dimensão ideológica (humanista).

Igualmente, o que se pode perceber do conceito de integridade da informação, pelo menos da forma como ele aparece em documentos oficiais como os três analisados neste artigo, é que ele também tem esse potencial. Inicialmente, é evidente o caráter funcionalista do conceito, na medida em que os documentos remetem sempre a uma ideia de ecossistema de informação saudável, de confiança nas instituições, de cumprimento das funções das instituições (aqui incluídas as autoridades cognitivas ou autoridades epistêmicas).

Mas os documentos mencionam também que há atores que se beneficiam com a poluição da informação (termo usado nos documentos, em lugar de desinformação). Há grupos que tiram vantagens políticas (exclusão de grupos vulneráveis, promoção de pautas extremistas, degradação do debate público) ou econômicas (maior atenção e engajamento, monetização) da poluição da informação – num claro direcionamento para uma compreensão crítica do fenômeno.

Os documentos também fazem alusão à compreensão de por que as pessoas se engajam, se apropriam e compartilham conteúdos desinformativos, relacionado tais processos à desilusão com a política e as instituições, apresentando dados de preferência por determinadas plataformas digitais, entre outros aspectos que se encaixam numa perspectiva compreensiva.

Por fim, há nos documentos menções a empoderamento dos usuários, por meio de capacitações no trato com a informação e as plataformas digitais quanto, também, na vinculação entre os processos de poluição da informação e os direitos humanos e a justiça social.

Ou seja, assim como se passou com a mediação da informação, há no conceito de integridade da informação potencial para serem trabalhadas todas as dimensões humanas e sociais relacionadas com os fenômenos da desinformação ou, como preferem os documentos analisados, a poluição da informação.

5. Considerações finais

Em sua análise sobre o conceito de integridade da informação, Santos (2024) faz alguns alertas, como o fato de não haver literatura acadêmica sobre o termo; de não haver clareza sobre como ele surgiu e como chegou às instâncias de discussão política internacional; e de que pode estar ocorrendo uma importação do conceito, pelo Sul global, sem a adequada e necessária discussão de seu significado. Ainda assim, a autora parece defender sua utilidade para a proposição de como deve ser o espaço digital, considerando os interesses dos diferentes povos e países, e entender que o conceito pode ser uma oportunidade de superar conceitos até então utilizados, mas incapazes de abarcar toda a complexidade das questões envolvidas.

Nesse sentido, a proposta do uso do conceito de integridade da informação aparece como uma oportunidade de resposta aos efeitos nocivos dos fenômenos ligados à desinformação. E, nessa linha, a perspectiva da mediação da informação mostra-se como adequada para ajudar na construção da fundamentação da ideia de integridade da informação.

Do ponto de vista da ciência da informação, o conceito de integridade da informação ajuda, ainda, na própria clarificação do que é a desinformação enquanto fenômeno informacional. Afinal, desinformação não é o contrário de informação. Informação tem a ver com toda a produção humana, incluindo a ficcional, a artística, a opinativa, a pessoal e muitas outras. Ou seja, a informação é a ação humana de produzir e utilizar os mais diversos tipos de registros do conhecimento e da expressividade humana. Nesse sentido, a desinformação é, também, informação. Mas, então, o que seria a desinformação? Ela é o oposto de um tipo específico de informação, daquela que busca retratar o real, que busca definir, apresentar fatos ou evidências de algo real – de forma que isso embase as decisões e as ações humanas.

Por isso, a desinformação é uma enganação, uma fraude. Ela tem por objetivo prejudicar a percepção da realidade, por parte de um público específico, de forma que as pessoas desse público tomem decisões prejudiciais para elas mesmas. A desinformação, mais do que informação falsa, é a ação de enganar ou confundir com um efeito específico, distorcendo para alguém a compreensão da realidade. Essa ação pode ser feita com informações totalmente falsas, ou apenas parcialmente falsas, ou ainda com distorções, recortes, alteração de autoria, veículo ou data. Daí a importância da integridade da informação, que lida com todas essas questões (autoria, veículo, completude de conteúdo, data e contexto). E daí a importância desse conceito para a mediação da informação, que pode passar a considerar todas essas dimensões em suas propostas de intervenção junto a sujeitos, sistemas, serviços e ecossistemas de informação.

 

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