Informatio
29(2), 2024, e204
ISSN: 2301-1378
DOI: 10.35643/Info.29.2.4

Dossier temático «Mediación en la información»


 

A crítica do duende: mediação algorítmica e o cérebro sem órgãos

La crítica del duende: la mediación algorítmica y el cerebro sin órganos

The Duende’s critique: algorithmic mediation and the brain without organs

Pedro Vidal Diaza ORCID: 0000-0003-0679-2523

a MAST-RJ, Brasil. Correo electrónico: pedrovidazz@yahoo.com.br

Resumo

Este artigo investiga a interação entre mediação e percepção informacional de conhecimento no processo de construção da realidade por meio de sistemas de informação. Inspirado pelo conceito de "duende", como delineado pelo poeta Federico García Lorca e reinterpretado pelo autor e artista Warren Neidich, o estudo propõe uma análise da mediação informacional partindo de uma derivação conceitual do "cérebro sem órgãos", em consonância com o conceito de "corpo sem órgãos" desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ao considerar o duende como uma intensidade emergente e evasiva que permeia realidades através da variação criativa, Neidich mobiliza potências que transcendem as formas tradicionais de mediação, escapando à rigidez do modelo sinóptico de vigilância algorítmica na psique humana e nas dinâmicas sociais. A partir do conceito de “cérebro sem órgãos”, entendido como uma experimentação agonística de negociação e emergência ontológica, o artigo sugere que a prática artística pode ser compreendida como uma ética da criação em momentos de inflexão na formação de campos de imanência na produção de signos sistêmicos e classificados na arquitetura neural e informacional da sociedade contemporânea. Ao afirmar a importância da criação artística na ampliação das percepções e na mediação de novos modos de vida, o artigo argumenta que a produção cognitiva e artística se configura como um horizonte criativo e produtivo nas relações econômicas e sociais.

Palavras-chave: mediação; algoritmos; arte; crítica; cognição.

Resumen

Este artículo investiga la interacción entre mediación y percepción informacional del conocimiento en el proceso de construcción de la realidad a través de sistemas de información. Inspirándose en el concepto de "duende", planteado por el poeta Federico García Lorca y reinterpretado por el autor y artista Warren Neidich, el estudio propone un análisis de la mediación informacional a partir de una derivación conceptual del "cerebro sin órganos", en la línea con el concepto de "cuerpo sin órganos" desarrollado por Gilles Deleuze y Félix Guattari. Al considerar el duende como una intensidad emergente y evasiva que permea las realidades a través de la variación creativa, Neidich moviliza poderes que trascienden las formas tradicionales de mediación, escapando de la rigidez del modelo sinóptico de vigilancia algorítmica en la psique humana y la dinámica social. A partir del concepto de “cerebro sin órganos”, entendido como una experimentación agonística de negociación y emergencia ontológica, el artículo sugiere que la práctica artística puede entenderse como una ética de la creación en momentos de inflexión en la formación de campos de inmanencia en la producción. de signos sistémicos y clasificados en la arquitectura neuronal e informativa de la sociedad contemporánea. Al afirmar la importancia de la creación artística para ampliar percepciones y mediar nuevas formas de vida, el artículo sostiene que la producción cognitiva y artística se configura como un horizonte creativo y productivo en las relaciones económicas y sociales.

Palabras clave: mediación; algoritmos; arte; crítica; cognición.

Abstract

This article investigates the interaction between mediation and informational perception of knowledge in the process of constructing reality through information systems. Inspired by the concept of "duende", as outlined by the poet Federico García Lorca and reinterpreted by the author and artist Warren Neidich, the study proposes an analysis of informational mediation starting from a conceptual derivation of the "brain without organs", in line with the concept of "body without organs" developed by Gilles Deleuze and Félix Guattari. By considering the duende as an emergent and evasive intensity that permeates realities through creative variation, Neidich mobilizes powers that transcend traditional forms of mediation, escaping the rigidity of the synoptic model of algorithmic surveillance in the human psyche and social dynamics. Based on the concept of “brain without organs”, understood as an agonistic experimentation of negotiation and ontological emergence, the article suggests that artistic practice can be understood as an ethics of creation in moments of inflection in the formation of fields of immanence in the production of systemic and classified signs in the neural and informational architecture of contemporary society. By affirming the importance of artistic creation in expanding perceptions and mediating new ways of life, the article argues that cognitive and artistic production is configured as a creative and productive horizon in economic and social relations.

Keywords: mediation; algorithms; art; critic; cognition.

Fecha de recibido: Fecha de aceptado:
CC-BY

Diaz, P. V. (2024). A crítica do duende: mediação algorítmica e o cérebro sem órgãos. Informatio, 29(2), e204. https://doi.org/10.35643/Info.29.2.4

30/05/2024 25/09/2024

Figura 1: “O Duende”, tirada pelo autor, 03 de mar, 2022.

1. O Estado e o Sujeito informacional

O avanço das tecnologias digitais e a crescente quantidade de informações disponíveis na era contemporânea têm desafiado as formas tradicionais de mediação informacional. A mediação informacional e algorítmica emerge como um campo crítico de estudo que investiga como algoritmos e sistemas automatizados participam desse processo de mediação, afetando tanto a disseminação quanto o consumo de informação. Algoritmos, alimentados por grandes volumes de dados, desempenham um papel cada vez mais predominante na determinação do que é visível e acessível aos usuários, moldando percepções, opiniões e comportamentos.

Neste contexto, o conceito de "Estado informacional" e "Sujeito informacional", conforme discutido por Sara Braman, adquire relevância central para pensarmos a institucionalização das dinâmicas informacionais. O Estado informacional refere-se à maneira como governos e instituições controlam, distribuem e regulam o acesso à informação, influenciando o fluxo de dados e moldando a esfera pública. Por outro lado, o Sujeito informacional diz respeito aos indivíduos que, ao interagirem com essas estruturas, se definem e são definidos pelo acesso e uso da informação disponível.

Este artigo propõe-se a explorar interseções entre a mediação algorítmica e dinâmicas de poder entre o Estado e o Sujeito informacional, propondo saídas e atravessamentos outros, além das dinâmicas de vigilância e classificação de dados digitais. A análise partirá das teorias de Braman, examinando como a mediação informacional não é apenas um processo técnico, mas também profundamente político e social, refletindo e reforçando relações de poder existentes. Ao compreender esses mecanismos, busca-se desvelar as implicações éticas e sociais da mediação algorítmica, promovendo um debate crítico sobre o papel das tecnologias de informação na sociedade contemporânea.

Questões de interatividade em conceitos estruturais econômicos e políticos como “capitalismo de Plataforma” (Srnicek, 2017) “capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2015), ou “tecnocapitalismo” (Suarez-Villa, 2009), indicam modelos que focam nas dinâmicas de complexidade socioeconômico e cultural ao armazenar, classificar e processar grandes volumes de informação como material de troca, controle, vigilância e pesquisas de dados para visualizar tendências sociais. Palavras, imagens e sons configuram expressões de metadados arquivados digitalmente influenciando vínculos entre cultura, comunicação e cidadania. As palavras se transformam em signos de busca e são articuladas algoritmicamente em um sistema pan-espectral eletrônico para o mercado, pois as informações que damos aos buscadores sobre nossos comportamentos, desejos e opiniões nos transformam em insumos mercantilizados.

Quase universalmente acessível e parcialmente gratuita, grandes empresas como os Quatro Grandes: Google (Alphabet), Amazon, Facebook (Meta) e Apple são comumente referidos como “Big Four” ou “GAFA”, também referidos como os "Quatro Cavaleiros", uma referência aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse (Assange, 2013). Tais empresas formam um oligopólio indireto e fornecem serviços de organização de algoritmos em estruturas de suporte de acesso para o usuário.

Usuários/consumidores/produtos submetem conteúdos com gostos e inscrições íntimas aos rastreamentos sistêmicos, globalizando uma economia do trabalho impulsionada pelo trabalho não remunerado dos usuários, físicos e mentais (cliques, rolagens de telas, disposição corporal, tempo livre e de trabalho, etc.). Dada a opacidade dos algoritmos e a transparência dos nossos dados, esta relação laboral assimétrica e desigual põe em causa a nossa capacidade de funcionar como cidadãos. Ações parciais, como criar auditorias independentes para aplicações financeiras ou exigir responsabilização pelo uso que algoritmos fazem de nossas informações, devem levar a questionamentos mais radicais do que em qualquer outro momento sobre o tipo de hegemonia que está sendo instalada.

A intensificação biopolítica através de sistemas de dados indexáveis, capturam inovações codificando dados e ideias, e tomam decisões sobre o que será selecionado para transformar em intervenções de mercado. Na antiga distinção gramsciana, a hegemonia se diferenciava da dominação por não ser simples imposição, mas controle que recebia consentimento ao levar em conta as necessidades e desejos dos subalternos em auto-exploração com consenso, agora disposto a expansão de formas precarizadas de trabalho em plataformas (Antunes, 2018).

A governamentalidade algorítmica não busca apenas o apoio das massas, mas a desorganização das massas. Quando a centralidade das análises de operações algorítmicas substitui a centralidade operacional dos sujeitos, elas levam a intencionalidade organizacional para a nuvem, buscando efeitos nos atos dos consumidores, usuários e cidadãos. Embora a aparente exaustividade dos dados sugira um conhecimento rigoroso e total, disponível a todos, essa percepção é obscurecida pela gestão da informação das empresas concorrentes, que selecionam mensagens com base em interesses particulares. A essas duas funções, que definem o que é um algoritmo em relação aos seus usos, devemos acrescentar que coletam informações não públicas e, portanto, desorganizam não apenas “as massas” ou nações, mas também o sentido do que é público.

A racionalidade politica subjacente a esse tipo de pratica é a da medida de segurança para o social que não é destinada a punir, mas somente preservar a sociedade contra o risco que ela corre em seu seio na presença de ameaças intrínsecas. O imperativo categórico ou uma razão de Estado se alia aos parâmetros de domínio panespectral para que potências globais desenvolvam e disputem um sistema de “global information dominance” (Mattelart, 2005). Se a “guerra é a politica por outros meios” como Clausewitz postulava no início da modernidade, com certeza a ciber-guerra se constitui em mais uma ferramenta e campo de atuação, dando condições também à atores menores a se equipararem em recursos e dispositivos de inserção.

A violência é, doravante, parte essencial da instalação do projeto econômico global, ou melhor, da “representação do mundo” (shaping the world). Seu instrumento comum: o domínio do tempo eletrônico, a observação e a escolha do público alvo em tempo real. Timely knowledge flow: a divisa da nova doutrina militar sobre o network-centric war desde a guerra do Afeganistão é também a dos estrategistas da economia (Mattelart, 2005, p.12).

A hegemonia cultural se confunde com o exercício do softpower, o poder de sedução e o recuo das estratégias que recorrem à força e à coesão às periferias globais, às zonas de sacrifício e fronteiras (Idem, p.9). Refletido no Estado Informacional, como tratado por Sandra Braman (2006), o sistema pan-óptico fora atualizado em um sistema pan-espectral com  adição de dispositivos que podem manejar muitos sujeitos ao mesmo tempo e sem que eles saibam que estão sendo vigiados, como ou porque estão sendo vigiados e quando eles se tornarão visíveis na tela interface pan-espectral.

O Estado informacional tem mais conhecimento sobre as forças simultâneas interagindo através do globo no presente do que pela a história. A consciência das condições atuais – mudanças epigenéticas – é muito maior. As consequências politicas disso são significantes, pois o conhecimento do passado fornece ‘insights’ sobre as forças causais que criaram as circunstâncias atuais, fornecendo informações valiosas para o planejamento futuro em um conhecimento diagramático temporal, podendo assim adaptar realidades interessadas (Mattelart, 2005, p.11).

A fabricação de consenso, assim como de dissidência controlada, passa pelas estratégias de desinformação, caos aplicado e propaganda política. Buscando engajar parte da população para agir conforme as intenções planejadas, internalizando e replicando a propaganda incessante de informação e mídia atinge campos espectrais nas redes sociais como enxames. Tais estratégias, acompanhadas de estruturas eletro-informacionais globais, fornece um acompanhamento indexado e “targeado” do desenvolvimento político na sociedade, podendo se adaptar e antever formas de recepção de conteúdo, seus desdobramentos e conflitos.

Não há mais formas, mas apenas relações de velocidade entre partículas ínfimas de uma matéria não formada. Não há mais sujeito, mas apenas estados afetivos individuantes da força anônima. Aqui, o plano só retém movimentos e repousos, cargas dinâmicas afetivas: o plano será percebido como aquilo que ele nos faz perceber, passo a passo. (Deleuze, 2002, p.133).

Esta nova abordagem de influencia geopolítica articula estratégias de diferentes níveis para proferir e afirmar tensionamentos na normalidade orgânica social e influir situações caóticas na rotina e funcionamento de determinada localidade, nacionalidade ou tema específico. A chamada guerra de 4ª geração busca no agenciamento de praticas de guerra chamadas “não-convencionais” e “revoluções coloridas”[1], influenciar e determinar campos de atuações e circulação de ‘verdades’ e pontos de vista como estratégia de controle e administração da fronteira de disputa e atualização de realidades.

Definindo o que o autor Andrew Korybko (2015) evidencia como “Guerras Híbridas”, tais operações são voltadas para desestabilização da opinião pública e influenciar políticas públicas e governantes. Através de ataques e desestabilizações não-diretas, ativadas através de redes, focalizam-se as trocas de regimes políticos, seguindo preceitos democráticos ou não, em busca do fortalecimento dos mecanismos de privatização de recursos estratégicos e geopolíticos.

Figura 2: “Quadro Guerra Híbrida”, recriado a partir do diagrama do autor Andrew Korybko, 2015, p. 95.

Revoluções Coloridas Guerra Não Convencional

Violência limitada

Violência generalizada

Urbana

Urbana e rural

Social

Em sua maior parte física, um pouco social

Caos contra as autoridades

Caos contra tudo

Mais barata

Mais cara

Redes sociais

Redes físicas (construídas com base nas redes sociais previamente estabelecidas na revolução colorida)

Divide os elos sociais da sociedade

Divide todos os elos na sociedade

O espaço urbano como espaço e fluxo de circulação e comunicação (transmissão, apropriação, reapropriação, destruição) configura múltiplas narrativas em sua constituição, sendo difícil ter apenas um relato social compartilhado. Os sistemas de informação e vigilância tomam o lugar de recomposição da visão dos acontecimentos e relatos da realidade social.

Steve Mann publicou em 1992 o estudo que aplica as teorias de caos em modulações militares chamado “Chaos Theory and Strategic Thought” (Teoria do caos e pensamento estratégico). Visto como dinâmica não-linear, o aparente caos apresenta muitas estratégias de desestabilização tanto material quanto ideológica e afetiva, variando nos seguintes termos apontados por Mann: formato inicial de um sistema, estrutura subjacente do sistema, coesão entre atores e a energia de conflito dos atores individuais.

O desenvolvimento e a pesquisa sociológica das constituições e estruturas de uma determinada sociedade ou localidade-alvo se torna matéria de controle e poder, de gerência, estruturação e alocação de recursos, e na influência e administração globalizada pelos grandes centros de vigilância. Se a política midiática investida não criar o caos necessário para essa mudança de regime, possíveis operações especificas de guerra não-convencional são iniciadas, as vezes concomitantemente, aderindo à tática de domínio de espectro total através da implementação do que definem como “império do caos”. Mann afirma que:

para mudar a energia de conflitos das pessoas – diminui-la ou direciona-la de maneiras favoráveis a nossos objetivos de segurança nacional – precisamos modificar o software. Como os hackers nos ensinaram a forma mais agressiva para modificar um software é usando um ‘vírus, e o que é a ideologia senão um vírus de software para seres humanos? (Mann, 1992, P. 22)

O âmbito psicológico de determinada sociedade-alvo se torna, portanto, o fator variável principal para ter-se sob controle, acompanhando e prevendo mudanças dinâmicas. Adquirindo pesquisas de marketing para denominação de estratégias de opinião publica em comum, a mediação algorítmica torna-se central em suas operações de gerência a partir de táticas de desestabilização e desinformação. Em sua estratégia definida como espectro de dominação total, William Engdahl (2009) escreve sobre este espectro total de dominância, corroborando e evidenciando tais abordagens disruptivas[2], onde se abrange desde a dominação na oratória acerca dos direitos humanos, até armas nucleares e no espaço dos meios de informação e comunicação:

2. Mediação sinóptica e a Guerra neocortical

A mediação sinóptica refere-se ao fenômeno onde muitos observam poucos, um conceito inverso ao da vigilância panóptica proposta por Michel Foucault, onde poucos observam muitos. Nas sociedades contemporâneas, a mediação sinóptica é amplamente facilitada pela mídia de massa e, mais recentemente, pelas plataformas de redes sociais. Através dessas tecnologias, figuras públicas, líderes políticos e celebridades estão sob constante escrutínio de um grande público, que consome e responde a informações em tempo real.

As teorias de redes assim como seus desdobramentos analíticos, mercantis e militares desaguam no que o autor Richard Szafrabski define como “Guerra neocortical”. Aprofunda o aspecto psicológico das operações quando o sistema mais moderno e eficiente, delimita como campo de atuação o próprio “cérebro coletivo”, como nódulos centrais de sociedades, e não apenas líderes individuais no comando.  Influenciar massas para aceitar ou se indignar contra determinada situação se torna um motor intrínseco nas atividades de manifestação em rede para o capitalismo de plataforma, mediando a atenção psicossocial através dos blocos de interesse político-econômicos.

A guerra neocortical é uma guerra que se esforça por controlar ou moldar o comportamento dos organismos inimigos sem destruí-los. Para tanto, ela influencia, até o ponto de regular, a consciência, as percepções e a vontade da liderança do adversário: o sistema neocortical do inimigo. Dito de maneiras mais simples, a guerra neocortical tenta penetrar nos ciclos recorrentes e simultâneos de ‘observação, orientação, decisão e ação’ dos adversários. De maneiras complexas, ela esforça-se por munir, os líderes do adversário – seu cérebro coletivo – de percepções, dados sensoriais e dados cognitivos projetados para resultar um uma gama de cálculos e avaliações estreita e controlada (ou predominantemente grande e desorientadora). O produto destas avalições e cálculos são escolhas do adversário que correspondem as escolhas e resultados que desamamos Influencias os líderes a não lutar é imprescindível (Szafranski, 1994, p. 17)

O movimento de corpos está no centro destes processos crescentes de digitalização e marketização de dados humanos. Pasquinelli (2023) argumenta que a IA deve ser compreendida não apenas como uma tecnologia emergente, mas também como uma continuação de sistemas de poder e controle historicamente enraizados. O autor traça a genealogia da IA investigando suas origens filosóficas e culturais, e demonstrando como essas raízes influenciam suas aplicações modernas. O comportamento humano social está cada vez mais codificado em padrões de informação permitindo a predição (e determinação) das interações ecológicas. Expressões humanas podem teoricamente desmaterializar em sequências de números, coletadas e armazenadas em arquivos digitais para diversos propósitos (saúde, marketing, vigilância, inteligência artificial, etc.). Warren Neidich (2016) separa etapas:

2.1 Capitalismo Cognitivo Inicial

2.2 Capitalismo Cognitivo Tardio

O que inicialmente constituía a ordem dos objetos e das coisas e suas relações, sua concorrência epistemológica, e que existia fora do sujeito que constituía os regimes ou leis do soberano, agora se interiorizava[4]. O sujeito no processo tornou-se autodisciplinado. Essa interiorização do que é exteriorizado, na medida em que códigos de cultura mapeados são sintagmaticamente reencenados como agenciamentos de memória, produz sistemas de autodisciplina que se insere em uma configuração neurobiológica de mapeamentos materiais ontologicamente esculpidos que formam a base dos hábitos de pensamento.

A guerra neocortical, um conceito emergente na teoria dos conflitos modernos, refere-se ao uso estratégico de informações e operações psicológicas para influenciar e dominar o inimigo no nível cognitivo. Esse tipo de guerra se foca na mente humana, buscando moldar crenças, emoções e comportamentos através de propaganda, desinformação e manipulação midiática. As tecnologias digitais e as redes sociais amplificam o alcance e a eficácia dessas estratégias, permitindo que atores estatais e não estatais conduzam campanhas de influência em escala global.

A guerra neocortical não é travada apenas nos campos de batalha tradicionais, mas nas mentes das pessoas especialmente no campo frontal cerebral. Campanhas de desinformação, fake news e operações psicológicas são empregadas para desestabilizar sociedades, polarizar opiniões e criar caos. Ao manipular narrativas e explorar vulnerabilidades cognitivas, os atores envolvidos na guerra neocortical buscam alcançar objetivos políticos, militares e econômicos sem a necessidade de conflito físico direto.

A "Frontalização Coevolucionária ou Marcha Rostral" refere-se a um conceito evolutivo que descreve a tendência dos cérebros de diversas espécies animais a desenvolverem uma maior complexidade e funcionalidade nas regiões frontais ao longo do tempo. Esse processo de frontalização está associado ao aumento das capacidades cognitivas, como o planejamento, a tomada de decisão e o controle de comportamentos complexos. A teoria sugere que, através da evolução, as pressões ambientais e sociais favoreceram a expansão e a especialização do córtex pré-frontal, facilitando a adaptação a desafios mais sofisticados. Dessa forma, a marcha rostral é vista como uma co-evolução entre as necessidades adaptativas dos organismos e as estruturas cerebrais que suportam essas funções avançadas.

O Hebbenismo, um termo cunhado pelo artista e teórico Warren Neidich, apropriado do trabalho da neurocientista D.O. Hebb, indica uma noção que explora as interações complexas entre o capitalismo tardio, a neurociência e a cultura contemporânea. Neidich introduz uma dimensão neurocientífica ao hebbenismo, argumentando que o desejo está profundamente enraizado nos processos neurológicos. Ele sugere que o capitalismo tardio explora e manipula esses processos para perpetuar o consumo em novas camadas tecnológicas e econômicas. Em sua análise, Neidich se baseia em estudos que mostram como a dopamina, um neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa, desempenha um papel crucial na motivação para adquirir e consumir.

Essa manipulação neurológica é evidente nas estratégias de marketing e publicidade que utilizam conhecimentos avançados sobre o cérebro humano para criar desejos e necessidades artificiais. Neidich argumenta que a mídia e a tecnologia digital amplificam esses efeitos, transformando o cérebro humano em um campo de batalha onde as corporações competem pelo controle da atenção e do desejo. O hebbenismo, portanto, não é apenas um fenômeno econômico e cultural, mas também neurobiológico.

Neidich utiliza a arte como uma ferramenta para criticar e descontruir o hebbenismo em suas obras que frequentemente exploram interseções entre arte, neurociência e cultura. O autor propõe que a prática artística pode estimular a criatividade, a reflexão e a conexão humana, oferecendo um espaço para imaginar formas de vida e organização social que escapem a previsão da vida de um sujeito através da mediação informacional e algorítimica.

Ao analisar esse fenômeno através de uma lente crítica, Neidich nos convida a reconsiderar nossas prioridades e a buscar alternativas que valorizem a experiência humana de maneiras mais críticas e significativas. Uma parte significativa da obra de Neidich é dedicada à neuroestética, um campo que investiga a relação entre a arte e o funcionamento do cérebro. Em suas instalações e performances, o autor frequentemente explora como as obras de arte podem afetar os processos neurológicos e, inversamente, como a compreensão desses processos pode informar a criação artística.

Por exemplo, em sua série "The Psychopathologies of Cognitive Capitalism," (2016), Neidich examina como o capitalismo contemporâneo afeta a cognição e a percepção. Ele utiliza uma variedade de materiais e técnicas para criar obras que provocam uma resposta neurológica e emocional nos espectadores, incentivando-os a refletir sobre como suas mentes são moldadas por forças econômicas e sociais. Arquivos de imagens e imagens coletadas e produzidas em pesquisa de campo podem ser utilizados como fontes materiais de conteúdo que efetuam dispositivos conectivos às memórias de grupos referenciados.

Portanto, o uso de imagens e suas práticas de gravação e montagem, acrescentam novas dimensões à interpretação da história cultural, permitindo aprofundar a compreensão do universo simbólico das produções de memória e histórias sociais principalmente em um contexto global de contato, alienação e apropriação[5].

A interseção entre mediação sinóptica e guerra neocortical revela um panorama complexo onde a informação e a percepção conformam camadas de intensidades poderosas. A mediação sinóptica fornece bases operativas para a execução de estratégias de guerra neocortical, onde a visibilidade e a narrativa são manipuladas para influenciar a opinião pública e moldar a realidade percebida. Em um mundo onde a informação é abundante e instantaneamente acessível, controlar a narrativa se torna essencial para o poder e a dominação.

Governos, corporações e grupos de interesse utilizam técnicas de mediação sinóptica para manter e reforçar seu poder, enquanto atores opositores empregam táticas de guerra neocortical para desafiar e subverter esses poderes. A batalha pela mente se torna tão importante quanto a batalha pelo território, com a mídia e as TICs atuando como campos de batalha críticos. Através de campanhas cuidadosamente orquestradas, esses atores buscam controlar a percepção pública, desmoralizar adversários e mobilizar apoio para suas causas.

A mediação sinóptica e a guerra neocortical representam aspectos centrais da dinâmica de poder na era digital. Compreender esses conceitos e suas interações é crucial para navegar no complexo ambiente informacional do século XXI. À medida que as tecnologias de informação continuam a evoluir, a capacidade de influenciar e controlar a percepção se torna cada vez mais sofisticada, exigindo uma análise crítica e constante vigilância para proteger a integridade das sociedades democráticas e promover a paz e a estabilidade globais.

3. O Duende e o cérebro sem órgãos

Com a memória topográfica, poderíamos falar de gerações de visão e até de hereditariedade visual de uma geração para outra. O advento da logística da percepção e dos seus vectores renovados de deslocalização da óptica geométrica, pelo contrário, inaugurou uma eugenia da visão, um aborto preventivo da diversidade das imagens mentais, do enxame de seres-imagem condenados a permanecer por nascer... a não ver mais a luz do dia em lugar nenhum.
—Paul Virilio, A Máquina de Visão, 1994.

Warren Neidich tem focado nas condições de mediação que o córtex pré-frontal do cérebro se torna o órgão neural dominante a ser alvo dos sistemas econômicos e algorítmicos através das mídias e tecnologias de comunicação. Muitas das características do trabalho pós-fordista e mais ainda no novo-taylorismo[6] do capitalismo cognitivo, como prognóstico, criatividade, flexibilidade e reações a novos ambientes, são qualidades que fazem parte do repertório de propriedades atribuídas ao córtex pré-frontal, aquela parte do o cérebro encontrado mais anteriormente localizado logo acima e atrás dos olhos e da testa. “Isso é basicamente o que é o capitalismo cognitivo intensifica como Frontalização Coevolucionária ou Marcha Rostral” (Neidich, 2016, p.5).

No capitalismo cognitivo, Neidich afirma o Corpo sem Órgãos (2008) não é mais um desruptor adequado para os estilos de trabalho e, portanto, uma nova forma de dissenso emerge requerida. A subsunção real será dominada pela subsunção neural onde cognitariados ou trabalhadores digitais configuram suas próprias vidas como trabalho em si. O corpo sem órgãos descarrilhou Capital Fixo e a produção de surplus na assemblagem fordista.  Já em atual estagio de mediação máquina/humana, um “Cérebro sem Órgão pode desregular diferentes formas de trabalho fixo existentes e futuros, intracraniais e extracraniais” no estagio tardio em um capitalismo cognitivo neural (Neidich, 2016, p. 5).

O autor desenha diagramas onde pode transmitir visualmente a sua produção conceitual dos sistemas informacionais e psicológicos envolvidos na atual fase de produção tecnológica.  A produção de controle desde a sociedade de controle à sociedade disciplinar, produz o deslocamento do panóptico para o sinóptico. A fonte de conteúdo e administração passa, portanto a ser interiorizada das tendências sociais, politicas, de compras, etc.

Um materialismo neural desenvolve-se a partir de um capitalismo neural onde regimes de verdade passam a ser disputados em epigenias sistêmicas. Um ponto de inflexão para criação e fuga de sistemas fechados que o autor aponta seria no que ele se refere como Duende. Junto as emergências culturais onde a variação da natureza conforma ao social, sistemas de uso desde o xamanismo às drogas psicoquímicas, produz-se também a arte como poesia, rap, colagens, ações, noise, que escapam da previsibilidade sistêmica. O cérebro sem órgãos, como Neidich se refere, afirma o poder-neural como principal fonte de produção de efeitos e realidades constituintes.

Figura 3: “Diagrama estatístico” Warren Neidich, 2016.

 

Figura 4: “Diagrama do Activismo Cognitivo” Warren Neidich, 2020.

O conceito de "Duende" segundo o poeta espanhol do século XX, Federico García Lorca, é uma força misteriosa e poderosa que infunde a arte com autenticidade, emoção e paixão. Lorca desenvolveu esta ideia em sua conferência intitulada "Teoria e jogo do duende" (1933), onde ele descreve o Duende como um elemento essencial da expressão artística, particularmente no contexto da música flamenca e da poesia.

Lorca define o Duende como um espírito ou força que surge das profundezas do artista e do espectador, criando uma conexão visceral e intensa. Ao contrário da musa, que é inspiradora e angelical, ou do anjo, que representa a perfeição técnica, o Duende é sombrio, terrestre e instável. Ele está ligado à terra, ao sangue e às emoções mais primordiais e intensas. É um fenômeno que não pode ser capturado ou controlado, mas que se manifesta espontaneamente, muitas vezes em momentos de grande risco emocional ou artístico.

O Duende, para Lorca, não é algo que pode ser aprendido ou dominado através da técnica. Ele não depende da habilidade do artista, mas sim de uma entrega total ao momento presente, uma abertura às forças emocionais e espirituais que transcendem a razão. É um elemento que traz uma qualidade de autenticidade e verdade à performance artística, que pode ser sentida profundamente pelo público.

Em sua conferência, Lorca descreve um momento em que o Duende se manifesta em uma performance: “O verdadeiro lutador tem que lutar consigo mesmo, com os recursos de sua própria mente, de seu próprio sangue. Ele precisa despertar os duendes do mais profundo de si mesmo e confrontá-los, olhos nos olhos.”

Além do flamenco, Lorca vê o Duende como uma força universal que pode se manifestar em todas as formas de arte, incluindo a poesia, a pintura, o teatro e a música. Ele acredita que o Duende está relacionado ao conceito de morte, não como um fim literal, mas como uma confrontação com os limites da existência e da expressão humana. O Duende é uma luta contínua, uma batalha que o artista trava para trazer algo verdadeiro e profundo à vida, enfrentando o desconhecido e o inefável.

Lorca sugere que o Duende é essencial para a criação de arte que é verdadeiramente viva e vibrante. Sem o Duende, a arte pode ser bela e tecnicamente impecável, mas carece de alma e profundidade. Com o Duende, a arte transcende as limitações do material e do técnico, alcançando um nível de expressão que ressoa com as verdades mais profundas da condição humana.

O duende é um rabisco dinâmico e sinuoso nos circuitos nervosos do cérebro e não deixa vestígios como memórias, mas apenas uma vaga sensação de êxtase. Seu ‘além’ é seu poder. Duende involuntariamente ecoa a descrição de Guattari de ritournelle (em si um motivo ou repetição musical) como um importante produtor de subjetividade. O Duende desvenda os limites e libera o repertório de respostas emocionais e afetivas coletivas. Ativa espaços sociais nos quais as habilidades especializadas dos atores/agentes/dançarinos estimulam outras ligações experienciais, diagramas e redes de sensações que levam a respostas linguisticamente inclassificáveis na carne do cérebro de um público.

Não se regista em geometrias ou topologias, e é aqui que difere de outras formas de produção cultural que normalmente se inscrevem em sistemas de memória cultural, tais como espaços projetados e a tela cinematográfica. O Duende sempre existe como “outro”, nunca estando preso a sistemas simbólicos maiores; embora símbolos possam ser usados para atingir sua dissonância ressonante orgástica. Registra-se como uma falta porque não consegue acessar as condições necessárias, como repetição e sincronia, que são exigidas para aumentar a eficiência neural, amplificar a conexão neural e, assim, produzir memória eidética ou memória fotográfica. Sinapses potenciais podem se formar, mas não são retidas e, embora elementos nervosos variáveis sejam chamados, sua ativação é momentânea.

Nas margens da sociedade, artistas autônomos estão produzindo obras de arte heterodoxas não institucionais que se opõem às atividades normalizadoras dos regimes institucionais. O capital cultural reflete não apenas essas atividades, mas também sua capacidade de se insinuar nas normas culturais que às vezes as alteram. A precariedade da vida do artista, a jornada de trabalho 24 horas por dia, a economia da valorização, o uso das relações públicas e outros fatos de distribuição da produção do artista são todas as características muito distintivas do capitalismo cognitivo neoliberal.

O que é relevante sobre o capitalismo cultural hoje é como o que antes era uma grande discrepância entre o trabalho do artista e o proletariado no modernismo desapareceu. Esta categoria de capital cultural, no regime do capital cognitivo, foi abraçada como um modelo preferido e adaptado para o trabalho hoje. As Distribuições de Sensibilidade (DOS) e Redistribuições de Sensibilidade (ReDOS) (Neidich, 2016) no Capitalismo Cognitivo são customizadas e baseadas em conhecimento. Esses valores e as atitudes do trabalho artístico ou criativo foram incluídos no termo classes criativas. As estratégias pelas quais a prática do conhecimento artístico cria dissensos, enfraqueceu no capitalismo cognitivo.

De fato, o modo de vida do artista foi adaptado e recuperado como forma de estimular o capitalismo. A alteridade, a alteridade, os espaços de heterodoxia e heterotopia que os artistas criam tornaram-se agora lugares de diferença, territórios de diferença, espaços desterritorializados em que novos tipos de produtos, novos tipos de ideias, novas formações podem surgir para serem recuperados pelas formas hegemônicas dominantes de capital cognitivo.

As produções rítmicas e adaptativas da administração das percepções sistêmicas se tornam fundamental nas dinâmicas produtivas no processo globalizante contemporâneo. Através das ferramentas de comunicação e informação, estratégias e modelos processuais de produção e competição social são engendrados entre a produção subjetiva de emoção política e fatos materiais na constituição do comum e da realidade social. A chamada ‘era da informação, do acesso e do conhecimento’ passa pelo agenciamento do controle onde a informação militarizada toma iminência dinâmica em diversas áreas da produção social, seja no jornalismo, no marketing ou nas relações politicas e econômicas.

É preciso então ler as doutrinas contra insurrecionais enquanto teorias da guerra que nos é dirigida, e que tecem, entre outras coisas, a nossa situação comum nesta época. Há que lê-las quer como um salto qualitativo no conceito de guerra, sob o qual nos podemos posicionar, quer como espelho enganador. Se as doutrinas da guerra contrar-revolucionária se modelaram a partir das doutrinas revolucionarias sucessivas, não podemos, contudo, deduzir negativamente nenhuma teoria da insurreição a partir das teorias contra insurrecionais. É esta a armadilha lógica. Já não nos basta manter uma guerra latente, atacar de surpresa, derrubar todos os alvos do adversário. Até essa assimetria foi reabsorvida. Em matéria de guerra, como de estratégia, não basta recuperar o atraso: é necessário tomar a dianteira. Precisamos de uma estratégia que vise não o adversário, mas a sua estratégia, que a volte contra si próprio. Que faça da sua crença no êxito o caminho para a derrota (Comitê Invisível, 2015, p. 106).

O conhecimento estratégico ampliado pela captura e ordenação eletrônica de dados, e em outra direção pelas denúncias sociais, é limitado pelo que não se quer saber ou se oculta, dificuldade que se agrava ao tentar montar culturas e modos de organização social díspares. Quanto mais afirma-se a transparência, mais obscuro as estratégias de sigilo serão desenvolvidas e adaptadas. Aos cidadãos ordinários e emergentes, resta o ensaio e a montagem cotidiana como estratégias de contra-ataque e exposição de problemas (Pasquinelli, 2019).

O gigantesco conhecimento dos algoritmos, sua capacidade de conectar bilhões de comportamentos individuais, aparece intensificado como base do poder estruturante. A lógica totalitária de sua apropriação de dados pessoais e a inaptidão dos sistemas algorítmicos para criar governabilidade social deixam de fora, ainda sem intervenções efetivas, uma lacuna entre cidadãos-consumidores-usuários.

A conformação dos hábitos de um indivíduo segue o encadeamento de informações, imagens e conexões são sempre específicos para cada usuário/intérprete, as leis de sua interconexão (concatenatio) devem ser encontradas no hábito/costume (consuetudo) do intérprete. Uma imagem, portanto, opera como um signo, cujo sentido final é uma ação, um hábito, um modo de vida em mediação complexa com efeitos de registro e arquivamento de momentos recortados, fixados e/ou expressados que marcam dobras e/ou escapam em entropias temporais.

Essas imagens universais das coisas são signos, que indicam a existência de uma lei que governa a maneira como elas são recordadas. Por um lado, elas permanecem particulares porque são diferentes para todos; por outro lado, elas servem como universais, chegando em última instância aos termos transcendentais. Como antes, entretanto, esses signos respondem às análises que construímos. O signo é feito de imagens, as imagens são feitas de traços, e os traços pressupõem o que poderíamos chamar de um certo grau de traçabilidade para todos os corpos. A memória penetra tão profundamente na essência do corpo que se torna parte de sua identidade individual. E se, como dissemos, o corpo não é nada mais do que a extensão de suas práticas corpóreas, parece-nos, agora, que essas práticas são o verdadeiro exercício da memória (Vinciguerra, 2017, p.16).

Uma zona estratégica informacional obscura é chave central para se investigar a contradição entre o papel emancipatório das redes sociodigitais e a força de controle dos sistemas de hipervigilância globais. A arte de mediar a distância entre pensar e ser, serve como uma exploração profunda da psique humana, iluminando lacunas negativas ontológicas que lembram o silêncio dentro do reino do som ou da música. Este espaço enigmático entre pensamento e a existência, realça a complexidade intrínseca da mediação e percepção info-social nas dinâmicas produtivas contemporâneas. Nesta mesma linha, lacunas psicológicas da percepção e mediação também são reproduzidas com o lapso de tempo, ‘lag time’, nos processos de fluxo de computação da informação, onde um sistema entre mentes e máquinas, processam, decifram, interpretam e reproduzem diversas montagens através de vastos dados de experiências e efeitos informacionais. É nesse interstício que florescem insights profundos para criatividade, arte e política, de estratégias bélicas e econômicas, consolidando o campo informacional e imaterial como tema intrínseco de ecologias emergentes, virtuais e atuais, humanas e não-humanas, para compreender possíveis meandros da mediação info-social e psicológica humana em seus meios orgânicos, tecnológicos, políticos, midiáticos, etc.

4. Conclusão

Este artigo se propôs a investigar a intricada interação entre mediação e percepção informacional de conhecimento no processo de construção da realidade por meio de sistemas de informação. Nossa investigação, fundamentada no conceito de "duende" de Federico García Lorca e reinterpretado por Warren Neidich, conduziu a uma análise que ultrapassa as fronteiras tradicionais da mediação informacional.

Os principais resultados indicam que o "duende", como uma força criativa e imprevisível, desafia as formas convencionais de mediação, escapando à rigidez dos modelos sinópticos de vigilância algorítmica. Em consonância com o conceito de "cérebro sem órgãos" de Deleuze e Guattari, nossa análise sugere que essa abordagem possibilita uma nova compreensão das práticas artísticas e informacionais como experimentações que rompem com estruturas rígidas e promovem uma ética da criação em momentos críticos de formação de realidades.

Ao responder à pergunta de pesquisa, concluímos que a investigação da interação entre mediação e percepção informacional é essencial para compreender os processos subjacentes à construção da realidade na era da informação. Nosso trabalho contribui academicamente ao oferecer uma nova perspectiva que integra conceitos teóricos de áreas distintas, como a arte, a filosofia e a ciência da informação, possibilitando um entendimento mais profundo das dinâmicas sociais contemporâneas.

A partir dessa perspectiva, entendemos o "cérebro sem órgãos" como uma experimentação agonística de negociação e emergência ontológica, que desafia as estruturas tradicionais de mediação e nos instiga a repensar as práticas artísticas como uma ética da criação em momentos de inflexão na formação de campos de imanência na produção de signos sistêmicos e classificados na arquitetura neural e informacional da sociedade contemporânea.

Ao afirmarmos a importância da criação artística na ampliação das percepções e na mediação de novos modos de vida, destacamos que a produção cognitiva e artística se configura como um horizonte criativo e produtivo nas relações econômicas e sociais. No entanto, reconhecemos algumas limitações em nossa pesquisa, principalmente no que diz respeito à aplicação empírica dos conceitos abordados, o que abre espaço para futuras investigações.

Sugerimos que pesquisas futuras explorem de maneira mais prática as implicações dessas ideias no campo da mediação informacional, investigando como essas novas formas de mediação podem ser operacionalizadas em contextos específicos, como na educação, na cultura digital e nas políticas públicas. Assim, nossa análise abre caminho para novas abordagens que transcendem as limitações dos modelos convencionais, sugerindo uma compreensão mais ampla e complexa da interação entre mediação informacional e a construção da realidade.

 

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Nota

[1] Cf.: “Anexos I: Uma exposição da mecânica central das revoluções coloridas” In.: Korybko, 2015, p. 113.

[2] “Em sua posição, os EUA são o único país travando a Guerra híbrida hoje. A Rússia só foi reconhecer tangencialmente esse novo fenômeno em maio de 2004 na Conferencia de Moscou sobre Segurança Internacional. Os chineses e iranianos ainda não responderam oficialmente às descobertas da Conferência, mas assim como a Rússia, os dois são inevitavelmente afetados por elas. Pode, portanto, levar pelo menos meia década até que algum outro país compreenda em sua plenitude a guerra híbrida ao ponto de conseguir se defender contra ela, quem sabe até ele próprio praticá-la.” (Korybko, 2015, p. 97).

[3] “A netwar é feita contra os novos inimigos que recorrem às redes: os cartéis da droga, os ativistas, os terroristas, etc. A cyberwar aplica-se às novas formas da guerra tornadas possíveis graças ao domínio das tecnologias da inteligência, da vigilância e do reconhecimento (Mattelart, 2005, p.10).

[4] SINÓPTICO. Segundo Thomas Mathiesen, em The Viewer Society (1997), o termo sinóptico oferece outra metáfora para as ações de vigilância, substituindo o seu antecessor, o panóptico. Fornece, antes, um sistema recíproco de controle em que muitos vigiam poucos. No modelo sinóptico, a torre central habitada pelo guarda penitenciário que observa simultaneamente a população de presidiários é substituída pela tela da TV ou do computador onde o público assiste.

[5] Cf.: León, Christian. Imagen, medios y telecolonialidad: hacia una crítica decolonial de los estudios visuales Image, Mediums and Telecoloniality: towards a Decolonial Criticism of Visual studies. Instituto de Estética – Universidade Pontificia Católica de Chile. AISTHESIS Nº 51, p.: 109-123, 2012.

[6] Au, W. (2011). Teaching under the new Taylorism: high-stakes testing and the standardization of the 21st century curriculum. Journal of Curriculum Studies, 43(1), 25–45

 

Nota del editor

El editor responsable por la publicación de este artículo es Giulia Crippa.

 

Nota de contribución autoral

Pedro Vidal Diaz: conceptualización, escritura y revisión.

 

Nota de disponibilidad de datos

El conjunto de datos que apoya los resultados de este estudio se encuentran disponibles em https://warrenneidich.com